* Por Marco Paulo Rolla
Na busca de reconhecer sentimentos que emergiram durante os dias em que nos encontramos reclusos, reconheço que um deles é de ter no corpo a memória do tempo performático, a auto submissão às restrições para criar situações onde o público e o artista experimentam mudanças de estado no tempo presente, na matéria sólida e no espaço sinestésico.
O performer vai se submeter a todas as restrições coerentes com a proposta do trabalho e estou consciente de que, no caso da Covid-19, não é uma escolha e somos obrigados a viver este tempo presente, a encarar solidões, a auto percepção dos pensamentos, sentimentos bons da independência obtida nesta solidão e sentimentos ambíguos, isto para citar alguns dos sentimentos possíveis na privação do livre arbítrio de ir e vir.
O tempo parece correr apressado porque estamos nele em um ritmo próprio, muitas vezes ralentado o movimento no dia, mas com o correr das horas muito mais rápido para a percepção de quem o vive no cotidiano em que estávamos imersos outrora.
O relógio se distancia e o tempo é vivência constante. O conceito de Arte e Vida ganha força e é um espelho para ajudar na aceitação da vida como ela está! No presente mais que “perfeito”.
No início do século XX, os artistas compreenderam a noção de Arte e Vida. A rica troca de conhecimentos e realidades que esta fricção pode gerar permitiu, desde então, o uso de objetos cotidianos, história, antropologia, atitudes e uma infinidade de materiais, o que permitiu o reconhecimento do corpo como obra. Este conceito foi mais e mais incorporado para trazer uma relação direta entre vida e arte. Experimentos com a performance no mundo, desde as ações dadaístas até o grande movimento performático que invadiu as artes nos anos 50, 60, 70 e nos dias de hoje, explicitam esta relação.
Mas, o que mais me interessa aqui, é o elo que podemos fazer com o que as pessoas estão vivendo com a situação de confinamento e as regras de movimentação social. Estas estão desenvolvendo em nós o senso de mudanças do “estado do corpo” pelo qual estamos passando e percebendo. Muitas vezes, não queremos sentir, não estamos preparados, mas perdemos a oportunidade de acalmar e respirar o tempo sem pressa. O artista da performance usa o tempo como um construtor da imagem/paisagem/acontecimento sob o olhar ansioso do ser humano tecnológico e industrial; imprime na mente a experiência do corpo em movimento sobre este tempo ou, ao reverso, do tempo em movimento sobre o corpo paralisado.
Há alguma semelhança no tempo que a pandemia nos colocou com o tempo provocado por uma performance de longa duração, considerando que na performance, outro tempo é construído para surgir uma nova percepção. Isto está acontecendo com todos em seu espaço íntimo, no tempo presente e no limite da casa/corpo. Dentro deste limite existe o “risco”, que é um outro dado fundamental da performance e também nos ronda agora. O limite, na verdade, é o que nos da a liberdade de expansão porque sabemos onde extravasarmos e não deixar extrapolar este contorno sem consciência e presença.
Temos a oportunidade de nos reconectar com nosso sentido próprio de tempo em cada ação realizada neste novo sistema em que estamos aprendendo a estar no agora.
Como acontece em uma performance, vamos nos colocar no centro dela, sendo o corpo vivencial. Assim, muitas sensações do espectador ansioso serão diluídas ao vivenciar o novo espaço em que vivemos o agora, imponderável, pois é a situação em que nos encontramos.
O performer, além de se deslocar no tempo, se coloca em rituais que tencionam estes limites muitas vezes incompreendidos por quem esta de fora na observação e, por ironia do destino, muito similar com o que estamos vivendo. A pandemia nos colocou um novo tempo em que, seria totalmente possível em uma segunda-feira parar e respirar com calma, coisa inimaginável de se vivenciar antes. Podemos relativizar imposições da indústria como os horários de nos alimentar, acordar, dormir e muitos outros aspectos de nossa vida hoje foram levados a um total desregramento nos dando uma realidade aleatória como um material a ser remodelado no tempo, que de tão dilatado parece pequeno.
Agora, cada um de nós, pode sentir em si como o performer usa o seu corpo criando energia adquirida na restrição, reinventando o momento vivido no presente! Muitas vezes, é desconfortável, mas por passar por aquele momento, tendo se submetido a toda ordem de situações desejadas e de acasos possíveis, ele encontra o alivio através de um outro estado que é alcançado quando concentramos em nossa percepção. Perceberemos que, com o passar do tempo de confinamento, vamos começar a ganhar nova energia, adaptando o psicológico e o sentir do tempo.
A arte nos ensina que podemos nos libertar da lógica na vida cotidiana a que fomos condicionados e que chamamos realidade na ética social imposta, desta maneira podemos transmutar o momento em ações corporais, estéticas e ações sobre o tempo vivido como nas performances de longa duração.
Podemos citar aqui o artista taiwanês Tehching Hsieh em sua performance: ONE YEAR PERFORMANCE 1980–1981 (veja aqui). Ele se confinou em um quarto, durante um ano e, a cada hora registrava sua presença em foto e filme, dia e noite, por 24 horas, assim um ano resultou em 6 minutos de filme. De novo a percepção do tempo sobre o corpo. Nas palavras do artista: “esta performance pode ser vista como uma repetição continua, mas em minha percepção, cada hora vivida intensamente não se repetia, era nova, porque estamos em um processo. O mais difícil foi dormir e acordar a cada hora, mas na vida é o mesmo, estamos sempre esperando a próxima hora, e temos que nos manter calmos. Um ano é o tempo que a Terra leva para circular o Sol. A Vida é a condição da Vida. A Vida é o passar do Tempo. A vida é o pensamento livre”.
A submissão ao momento vivido, é a base fundamental de uma ação performática. Mas, no Brasil, temos muita resistência a nos submeter a algo, pois temos uma noção distorcida, militarizada e torturante da disciplina, resultantes de nossa vivência no regime militar. Disciplina e submissão são muito importantes para se alcançar evoluções em nosso ser. O sujeito quer liberdade, mas não há liberdade sem limites, pois sem sabermos de nosso contorno perdemos a forma no espaço.
Hoje, quem está nos dando este contorno é a natureza, criando um vírus que de maneira muito viva, com energia muito criativa, vai devolvendo ao homem a violência depositada nesta natureza da qual somos parte.
Para se criar uma performance de longa duração é necessário criar estratégias de reconhecimento deste contorno, repetições que se renovaram a cada momento, como em um jogo de improviso. Muitos podem pensar que improvisar e fazer sem saber, mas ao contrario disto, o improviso exige, a priori, o conhecimento de uma base da forma, e assim podemos expandir e correr riscos pois sabemos para onde voltar com segurança, assim como voltar para casa em nosso cotidiano. O acontecimento regular cria a forma reconhecível, uma base, para que o inconsciente e o acaso ocorram sem perder-se no delírio e no emocional.
Os improvisos corporais exigem a atenção no tempo, no espaço e como o outro. Desde que entendi que o movimento e o corpo eram um material importante na minha linguagem, submeto este corpo a distintos treinamentos como: natação, yoga, dança, meditação, etc.…tudo que pode elaborar mais minha atenção e me dar resistência para suportar, psíquica e corporalmente, um novo estado. O Improviso, treinado na musica e na dança, me deu a habilidade de lhe dar com acontecimentos inesperados como parte integrante e desejada da obra.
Quem sabe esta noção vivida por nós possa trazer uma compreensão e aproximação das pessoas sobre as premissas criadas em uma performance de longa duração, para expressar a vida com a experiência corporal vivida no tempo?
A oportunidade aqui é de se criar consciência de seus próprios limites e se expandir, lapidando o espírito e o funcionamento de todo o corpo etéreo, energético e sinestésico. O tempo está suspenso como em uma performance, mas quantas vezes suportamos ser o expectador de uma performance por 2 horas? Hoje podemos nos localizar dentro deste espaço atemporal e parar de ser quem assiste para assumir sua presença na vida, parando de se sentir aprisionado e dependente das telas planas, iluminadas a frio, para não se sentir isolado. Estas telas são instrumentos importantíssimos neste momento onde não podemos nos conectar materialmente ao outro. É o único sistema seguro de dialogo e contato com o material e as necessidades da Vida. Mas, podemos agora que as funções capitais que nos faz viver na correria ralentaram, descansar os olhos e olhar para dentro, aceitando o tempo de reflexão, introspecção e vivencia de si. Por mais que esta experiência pareça solitária, está sendo vivida por todos os humanos na Terra. Quem não se submeter a ela se desintegrará!