Presente em ao menos cinco exposições recentes, três delas ainda em cartaz, o baiano Acervo da Lage é uma das mais originais iniciativas no circuito da arte e cultura do país. Ele está na mostra Ensaios para o Museu das Origens, no Instituto Tomie Ohtake e no Itaú Cultural, em Dos Brasis, no Sesc Belenzinho, e César Bahia, no Museu de Arte do Rio (MAR), além de ter participado de A Memória é uma Invenção, no Museu de Arte Moderna do Rio (MAM Rio), e A Parábola do Progresso no Sesc Pompeia, ambas no ano passado.
Criado em 2010 pelos educadores Vilma Santos e José Eduardo Ferreira dos Santos, o Acervo da Laje reúne, em duas casas compradas pelo casal, uma coleção de centenas de obras que foram doadas pelos artistas ou seus amigos, muitas delas também encontradas para descarte. Como a primeira casa era em uma laje, o nome vem dessa situação.
Tudo começou com uma pesquisa a partir do doutorado em Saúde Pública de José Eduardo. Seu orientador, Gey Espinheira (1946-2009), o estimulou a estudar a beleza do Subúrbio Ferroviário. “Junto com Vilma e o fotógrafo Marco Illuminati começamos a fotografar o território, em 2010. Vilma e eu, diante da morte de cinco diferentes artistas do território, começamos a procurar pela cidade em brechós e mercados as obras desses artistas para que as pessoas do Subúrbio as conhecessem”, conta ele.
Das cinco mostras citadas, quatro são coletivas, que apresentam o Acervo da Laje em meio a outras coleções e territórios, apontando para seu caráter como um lugar fora do eixo que se coloca como um espaço que dá visibilidade a uma série de artistas/artesãos – a categoria aqui não é o que mais importa –
que não são conhecidos. Já a mostra do MAR é uma espécie de passo a diante, pois, ao se dedicar a um dos artistas no Acervo, César Bahia, com mais de 200 obras produzidas entre 2010 e 2023, passa a dar visibilidade e inserir seu nome de maneira institucional.
Pelos seis locais onde o Acervo da Laje é exposto, já que uma das mostras se divide em dois espaços, pode-se perceber como o circuito percebe a relevância e a originalidade desta iniciativa. Ele é apresentado em seu site como “um espaço de memória artística, cultural e de pesquisa sobre o Subúrbio Ferroviário de Salvador”. Nesta região vive cerca de 10% da população da capital baiana.
Entre os curadores que passaram pelo Acervo, estão ao menos duas que cuidaram da Documenta de Kassel, como Ruth Noak e Marina Fokidis, e três envolvidos em edições passadas da Bienal de São Paulo, como Lisette Lagnado, Pablo Lafuente e Paulo Miyada.
Atualmente, 611 obras de 30 artistas estão acessíveis no site, além de outras categorias gerais como Azulejaria, Coleção Inicial, Brinquedos ou A Beleza do Subúrbios, entre outras. Esta última sessão, por exemplo, reúne fotografias digitais que participaram da exposição A Beleza do Subúrbio realizada com alunos de São João do Cabrito e Itacaranha que participaram de uma mostra em dezembro de 2013, no bairro do São João do Cabrito.
José Eduardo, que estava na abertura de Dos Brasis, em agosto passado, mandou um depoimento por e-mail sobre o projeto, a partir de uma pergunta bem ampla, que dizia respeito a como o Acervo foi criado e se obras que pertencem a ele são vendidas. Para ajudar na leitura, fizemos algumas divisões temáticas na reposta:
O INÍCIO DO ACERVO
José Eduardo – Nós começamos o Acervo em 2010 a partir de uma pesquisa sobre a arte invisível dos trabalhadores da beleza nas periferias de Salvador, pois, quando terminei o doutorado em Saúde Pública, estudando as repercussões do homicídio entre jovens da periferia, o professor Gey Espinheira me pediu para que eu estudasse a beleza do Subúrbio Ferroviário de Salvador e aí junto com Vilma e o fotógrafo Marco Illuminati começamos a fotografar o território, em 2010. Vilma e eu, diante da morte de cinco diferentes artistas do território, começamos a procurar pela cidade em brechós e mercados as obras desses artistas para que as pessoas do território as conhecessem. Como morávamos numa casa na laje surgiu o Acervo da Laje em 2010, e tivemos que nos mudar depois para uma casa alugada até construir a nossa casa, em 2015, que também faz parte do Acervo da Laje.
COMPRA E VENDA
José Eduardo – As obras foram e são compradas, encontradas em descartes ou recebidas em doação por artistas, moradores e amigos/as. Na época inicial eu fazia um pós-doutorado pelo PNPD, e isso nos ajudou muito na pesquisa, identificação de artistas e depois começamos a fazer dois projetos para tornar visíveis esses artistas e as obras. São 13 anos de trabalho, e não sabíamos o que tínhamos nas duas casas. Durante a pandemia conseguimos um edital para catalogar as obras iniciais no site, assim como a criação da hemeroteca, tudo isso com a participação de muitas pessoas do território, particularmente jovens e moradores que participavam das ações com profissionais das áreas de museologia, arquivo, design e outros.
Mensalmente tirávamos uma parte dos nossos parcos ganhos para comprar as obras para gerar e difundir a criação artística do território. Vilma dava “banca” [aulas de reforço escolar] aqui no Acervo, e eu era professor universitário, mas durante a pandemia adoeci e pedi demissão da universidade, pois cheguei a receber R$ 250 como salário. Aí paramos de comprar as obras com mais regularidade. Mas, antes disso, as coleções já estavam formadas nas duas casas e se constituem como parte do Acervo da Laje.
Nós não vendemos as obras, pois elas fazem parte do Acervo da Laje, que é o único museu-casa-escola do Subúrbio Ferroviário de Salvador, e também há muitos materiais e obras que encontramos descartadas como placas, tijolos de antigas olarias, esculturas e tudo isso também faz parte do Acervo. Quando conseguimos aprovar um projeto também reservamos um pequeno recurso para comprar as obras, pois consideramos que isso é importante para o território e seus/suas artistas.
MOSTRAR O INVISÍVEL
José Eduardo – Somos cuidados por uma grande quantidade de pessoas que nos ajudam a desenvolver as ações como oficinas, bate-papos na laje, visitas guiadas e depois do site surgiram os convites para exposições no MAM Rio, MAM-BA, Sesc Pompeia, e agora no Solar Ferrão com Brasil futuro: as formas da democracia, no MAR Rio e no SESC Belenzinho. Talvez a ideia do Acervo seja a de mostrar o invisível e quebrar os cânones hegemônicos das artes brasileiras, e por isso sempre dialogamos com muitos curadores como Keyna Eleison, Pablo de La Fuente, Marcelo Campos, Clarissa Diniz, Igor Simões, Lisette Lagnado, André Pitol, Yudi Rafael, João Angelino, Ayrson Heráclito, Marina Fokidis, Ruth Noack, Luiza Proença, os curadores da 31ª Bienal de São Paulo, na qual fomos convidados para falar.
Participamos da terceira Bienal da Bahia e antes disso fizemos muitas exposições aqui nas lajes das periferias de Salvador com o projeto #Ocupa Lajes em duas edições (2016 e 2018), movimentando a cidade inteira. Ou seja, desde o surgimento o Acervo da Laje sempre buscou um não nivelamento por baixo do que é ser um espaço de arte e memória na periferia, sempre dialogamos com todas as pessoas que nos visitam, desde crianças, jovens e adultos e pessoas do mundo inteiro, pois as artes brasileiras precisam conhecer as produções de artistas das periferias, e eles e elas devem ter seus nomes na história, e não mais ser considerados fazedores de uma arte menor.
SEMPRE COM LUTA
José Eduardo – Do mesmo jeito que a memória das periferias precisa ser contada por nós, assim precisa ocorrer com a democratização das curadorias, sempre em diálogo. E quando uma pessoa se interessa por um artista nós indicamos os próprios para não sermos nós os novos colonizadores, rs. É isso. O Acervo da Laje nasce de um casal, se multiplica na coletividade do Subúrbio Ferroviário de Salvador, está ligado às novas gerações que começam a trabalhar com cultura e arte, e nas exposições que fazemos fora daqui tentamos levar o máximo possível de pessoas para irem conosco e ter um outro horizonte, não mais aquele que era relegado à nos, a invisibilidade e a exclusão. Enfim, trabalhamos sem dinheiro, mas com muita curadoria e diálogo, e quando a coisa aperta fazemos campanha, pedimos apoio, mas nenhum apoio formal até hoje nos foi concedido. Tudo é sempre – e sempre será – com muita luta, pois viver de arte e memória no Brasil é um desafio. Mas nós gostamos de desafio. E, como sempre, temos sido muto bem cuidados fora da Bahia, rs.