À PORTA DO PRÉDIO onde fica seu ateliê, Moisés Patrício, artista e educador, recebe convidados com um sorriso e um abraço. Todo de branco, o artista por trás da série fotográfica Aceita? e da série de performances Presença Negra, que reúne negros para visitas em grupo a aberturas de galerias de arte, explica que ocupa o local, emprestado por uma amiga, há dois anos.
Patrício é artista e é negro. Para ele, as duas coisas não precisam estar sempre acompanhadas, mas não devem ser esquecidas. “Por que toda vez que um artista que é negro faz uma exposição ou projeto as pessoas chamam de Arte Negra? De alguma forma, isso acaba reduzindo tudo a essa única questão. Ninguém diz arte branca quando o artista é branco”, questiona. Para ele, arte é arte, mas Patrício não foge à critica de seu próprio questionamento, pois muitas vezes artistas brancos, mais velhos e conservadores, manifestaram opiniões como se a arte no Brasil estivesse em momento decadente, em referência à arte afro-brasileira e à arte periférica. “Já ouvi, também, de artistas brancos que ‘a arte não tem cor e que, portanto, não há porque privilegiar alguns artistas porque são negros’”, reproduz. Para ele, isso acontece porque uma parcela da classe artística receia perder seus privilégios.
Em 2014, negros (pretos e pardos) já representavam a maior parte da população brasileira, com 54% das autodeclarações étnico-raciais, mas ainda assim sua presença nos espaços artísticos é baixa. Mesmo com a pouca representatividade na arte, afrodescendentes têm dificuldade em escapar dos estereótipos. Negros costumam ser associados artisticamente, na forma mais comum e cotidiana, a temas como a escravidão, ritos tribais de etnias africanas e às religiões afro-americanas.
Mas o cenário começa a mudar e museus brasileiros estão abrindo as portas para a arte contemporânea de origem afro. Em maio de 2018, o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) inaugurou a maior exposição de artistas africanos em São Paulo. Foram 90 obras de artistas de oito países africanos e dois artistas afro-brasileiros. Agora Museu de Arte de São Paulo (Masp), considerado cartão postal da cidade, terá pela primeira vez todo o seu espaço dedicado à exposição Histórias Afro-atlânticas. E não acaba aí. O Instituto Tomie Ohtake, no bairro de Pinheiros, outra instituição bastante popular na capital paulista, firmou parceria para expor, junto ao Masp, cerca de 400 obras de mais de 200 artistas na Afro-atlânticas.
Moisés está entre os 200 artistas da exposição. No Masp, são de autoria do artista. E o destaque é para sua série fotográfica Aceita?.
A mão preta que envelhece
Andar pela cidade de São Paulo é estar diante de finais e começos o tempo todo. Dos trabalhadores que dão vida à cidade logo nas primeiras horas da manhã, antes mesmo do sol nascer, aos resíduos do consumo dos produtos cotidianos da vida urbana. Embalagens plásticas, papeis, garrafas, roupas, móveis: é possível encontrar todo tipo de objeto nas esquinas da cidade. O lixo, para Patrício, diz muito. A série de fotos Aceita? expõe a inquietação do artista paulistano com a cidade, com tudo aquilo que, segundo ele, deixamos de ver quando descartamos os plásticos, as vidas e uma variedade de bens com ou sem valor.
Moisés explica que a série nasce do seu desespero em ser assimilado pela sociedade ao seu redor e das reflexões sobre a mão de obra do período escravocrata e, atualmente, servil. “A série nasce, também, da busca de olhar para a mão como obra artística. Ela nasce do meu desespero de ser assimilado pela sociedade. De um modo geral, na faculdade, tive muita dificuldade de encontrar minha poética, porque tudo estava ligado a um universo pelo qual sinto mais dor do que amor. Passei quatro anos estudando e me embranquecendo”, conta. Para se reencontrar, o artista produziu uma serie de autorretratos de nu artístico e outra de fotografias de partes do seu corpo. Mas foi caminhando pela cidade que encontrou o tom. “Eu aprendo e apreendo de outra forma, minha aprendizagem esta muito ligada à dança, à comida, ao tempo das coisas, de fazer junto, olhando. Fui educado assim no terreiro [de Candomblé]. Então, lá, você canta e dança para ter acesso ao conhecimento”.
Filho de Exu no Candomblé, orixá ligado à comunicação, movimentos do corpo, ao caminhar, ao facilitar o trânsito de corpos e ideias, Moisés se deparou com a cidade e seu próprio corpo como obra. Fez uma, duas, três fotos e, então, nasceu a série Aceita?, que busca, entre tantas coisas, discutir o descarte provocado pelo consumo e se apropria desse desprezo como metáfora para o que chamou de “descarte do jovem negro no Brasil”.
O artista nasceu na periferia. Aos nove anos teve contato com a arte pela primeira vez, ingressando nas aulas promovidas pelo artista argentino Juan José Balzi, que morreu em 2018, aos 89 anos. “Ele [Balzi] disponibilizava os materiais, levava tintas, papeis e jornais para nós. Ele tinha um enfoque político e fazia questão de levar os jornais da semana para compartilhar com a gente. Nos ensinava técnicas de desenho e de pintura, e nos ajudava a desenvolver leitura crítica. Balzi intercalava os encontros no bairro com idas aos museus da cidade, como Pinacoteca, por exemplo”. Hoje, com 33 anos, Moisés conta que conheceu a arte na sua forma mais libertadora, diferente dos formatos engessados que estudou na ECA-USP, Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.
Durante os quatro anos em que estudou, Moisés viveu sua maior crise enquanto artista. Sendo um jovem negro, de periferia, a arte europeia, majoritariamente branca, não proporcionava identificação. “Existe uma prepotência, uma arrogância do ser professor de uma universidade pública para um aluno negro. Eles se deparam com uma deficiência, uma falha e aí a minha maior frustração era que essa insuficiência me impedia de desbravar junto [com os professores] esses temas. Eu os colocava na parede e dizia ‘olha, eu não tenho uma afinidade com o Expressionismo alemão. Onde estão as outras referências?’”. A resposta, segundo Patrício, era de que seu olhar estava condicionado. “Eles costumavam dizer ‘vem aqui, vou te ensinar’. Eu ficava naquele lugar de [ser] muito pequeno, sem crescimento”, critica.
Apesar disso, o cenário mudou, ainda que pouco, para melhor. De acordo com ele, nos últimos quatro anos surgiu um grupo de artistas e estudantes negros da instituição que, juntos, criaram o coletivo Opa Negra, que promove ações de empoderamento e valorização do saber negro. Depois de se reencontrar, ele voltou à ECA como palestrante e, a partir de junho, ocupará no Masp um espaço que já foi menos aberto ao não-branco.
Apesar de ter sido idealizada como uma série de 200 fotos, Aceita? evoluiu para algo mais. Hoje, Moisés planeja chegar às mil fotos e seguir contando. Ele explica que a série continua trazendo reflexões atuais e importantes à sua vida, e que, além disso, enquanto negro, criado na periferia, ele deseja ver sua mão envelhecer a cada novo clique.