Necropolítica, de Achille Mbembe, ensaio publicado originalmente em inglês em 2003, e no Brasil em 2018, começa de forma contundente, lembrando os termos pelos quais Michel Foucault definiu o biopoder nas últimas aulas de Em defesa da sociedade, curso proferido no Collège de France, em 1975-1976: “Ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação do poder”. O que Mbembe então pergunta a partir dessa primeira constatação é acerca das condições práticas que tornaram possível esse poder de matar, de deixar viver e de expor à morte. E, mais ainda, se essa concepção de biopoder ainda poderia ajudar no entendimento das formas contemporâneas do exercício da política, cujo objetivo primeiro seria agora o assassinato do inimigo.
Lembremos então, que Necropolítica foi escrito, não por acaso, à sombra dos ataques às torres gêmeas, em Nova York, ocorrido dois anos antes. A semântica da “guerra”, em especial da “guerra ao terror”, utilizada à exaustão para justificar e legitimar todos os meios possíveis, independentemente do grau de violência e crueldade, para defender, proteger e preservar os valores do Ocidente cristão, assim como o das democracias liberais, ensejou a Mbembe uma reflexão a propósito da política como uma forma de guerra (retomando o conhecido princípio de Clausewitz, de que “a política é a guerra por outros meios”), para perguntar qual o lugar, nessa guerra, concedido à vida, à morte e ao corpo.
Enfim, em que medida vida, morte e corpo se articulam com modos de exercício do poder.
Reunindo Foucault, Carl Schmitt e Giorgio Agamben, Mbembe vai operar um primeiro deslocamento na concepção foucaultiana de biopoder ao pensar a indissolubilidade entre biopoder, soberania, estado de sítio e estado de exceção. Este último aspecto, como sabemos, tornou-se uma espécie de concepção diretriz para o entendimento do nazismo, do totalitarismo, dos campos de concentração e extermínio.
Aos olhos de diversos filósofos importantes de nossa época, como Adorno, Hannah Arendt, Agamben e o próprio Foucault, o campo de concentração se tornou uma espécie de “metáfora central” para entendermos a que ponto pode chegar a combinação entre violência soberana e destruição, o que seria uma espécie de “último sinal do poder absoluto do negativo”.
Os campos de extermínio da Segunda Grande Guerra representariam, assim, seja o horror que ultrapassa qualquer imaginação (Arendt) ou ainda o lugar da mais absoluta desumanização já ocorrida em nossa história (Agamben). Nessa perspectiva, o estado de exceção, como o diz Agamben, deixa de ser a suspensão provisória do Estado de Direito, diante de situações emergenciais, para se tornar o próprio paradigma do governo constituindo, dessa maneira, uma espécie de “zona incerta”, de uma “terra de ninguém”, habitadas entretanto, no caso do processo de colonização, pelo “desejo de inimigo”, pelo “desejo de apartheid”, pela “fantasia do extermínio”, como dirá Mbembe, muitos anos depois, em Políticas da inimizade.
A singularidade de Mbembe nesse debate não é a de desconhecer ou a de subvalorizar o extermínio dos judeus. Mas, é a de produzir um outro deslocamento nos termos do debate, qual seja, o de mostrar que as condições do campo de concentração foram dadas por um acontecimento que antecede o dispositivo biopolítico do século 19, qual seja, a colonização e, por consequência, a experiência da escravidão: “Qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica”, escreve ele, em Necropolítica.
A forma da plantation, por si só, já mostra bem o quanto o regime de escravidão constitui um permanente estado de exceção. Nela, o escravo é desumanizado a tal ponto que só aparece como uma “sombra personificada”, desumanização que corresponde a uma tripla perda: a do seu “lar”, a dos direitos sobre o seu corpo e a dos seus direitos como “cidadão”.
Sem fala e sem pensamento, o escravo é um objeto, uma coisa, uma mercadoria, que pertence ao senhor. Entretanto, a esse processo crescente e avassalador de desumanização, o escravo responde, resiste, por meio de uma reapropriação de si, em especial por meio da música e de seu próprio corpo. Surge aí, em meio a esses paradoxos fundados na figura desumanizada do humano, uma espécie específica de terror, que torna o caminho entre a senzala e a plantation propriamente dita, uma experiência que tangencia, o tempo todo, a da morte. A colônia é assim um lugar do permanente exercício de um poder à margem da lei e onde a “paz” nada mais é do que o rosto sinistro de uma “guerra sem fim”.
Cabe a nós perguntarmos em que medida a análise de Mbembe pode nos ajudar a entender a nossa própria história, marcada pela escravidão e pelo racismo. Sem esquecermos que a escravidão atingiu também as populações indígenas e que o trabalho escravo é uma prática ainda existente no País. Parece que um passo necessário a ser dado de antemão é o reconhecimento que ainda vivemos, em diversos aspectos, num estado de coisas marcado pelas experiências do terror e da morte iniciadas na experimentação biopolítica que foi a colonização.