Os primeiros desenhos de Germana Monte-Mór — realizados no fim dos anos 1980 e começo dos 1990 — pareciam verdadeiros hematomas. A artista evitava a presença explícita de um fazer que ordenasse o asfalto sobre a superfície de papel. Tudo se passava como se a uma pancada inicial se seguissem movimentos que independiam da sua vontade. Assim, seus desenhos também tinham o aspecto de algo feito de dentro para fora.
Por mais que a matéria com que desenhava tivesse uma consistência rude e ostensiva, seu tratamento conduzia mais a uma revelação da capilaridade do papel do que à construção de figuras que estabilizassem a área em que surgiam. As formas que víamos eram a configuração precária de um movimento que tendia a uma expansão continuada.
Posteriormente, seus desenhos foram adquirindo maior definição e incorporando áreas de cor. As áreas de asfalto encorparam e passaram a se diferenciar, mais intensamente, das demais regiões do desenho. No entanto, muito daquela instabilidade formal permaneceu, de par com o contraponto com as regiões de cor e relevos. A presença ainda mais acintosa do asfalto se via acentuada pela irregularidade de seus contornos, pelo aspecto orgânico de sua configuração. Com sua inconstância, eles não se revelavam aptos para conter a massa que circunscreviam. Criava-se então uma espécie de tensão superficial prestes a ceder. Esse movimento se intensificou nos desenhos expostos em 1998, pois então passou a haver também, num mesmo trabalho, uma relação entre manchas negras e luminosas que, num jogo de atração, aumentava a expansão das áreas negras.
O mundo que surgia nesses desenhos tinha uma constituição meio violenta e traumática. E, a partir dos anos 2000, como ocorre na vida, introduziu-se a alegria das áreas e relevos de cores luminosas. Para mostrar-se com força, o mundo precisava tornar-se desmedido. A intensidade das superfícies negras advinha da capacidade de extravasar seus limites, mais do que de uma saturação ou de extrema concentração. E decorria disso o caráter traumático dos trabalhos: para afirmar-se, as regiões negras deveriam incessantemente mover-se para além de si e entrechocar-se entre as regiões coloridas, colocando no horizonte uma identidade que jamais poderia ser alcançada. Penso ser essa também a razão de uma espécie de sensualidade dolorida que permeia todos os desenhos de Germana Monte-Mór. O movimento em direção ao que está além de nós — a busca de uma continuidade com o outro implicada no erotismo — revela-se como uma condenação ao degredo, como desassossego e dor. Sem nunca perder a serenidade.
Justamente porque está para além de nós, porque aí a vontade não reina, ainda que prometamos a cada vez não mais bater nessa porta. E ela agora chega aqui novamente. Manteve sua experiência de base e saiu enriquecida. A alegria é também a prova dos nove. Como dizia o poeta levantino, toscamente traduzido por mim: “Não é a água que passa/ que mata a sede/ é a que se bebe / é preciso subir aos céus/ descer aos infernos/ para conhecer uns poucosTenho a impressão de que o reencontro de Germana com a obra de Hans Arp trouxe na bagagem a crítica a seus contemporâneos modernos com seu viés dadaísta, que ironizava a forma marcada que vem de Cézanne. Penso que o ceticismo dos trabalhos de Germana com asfalto – muito bons por sinal – ao cruzar com Arp, produz uma improvável tangência com nossa tradição, com Amílcar de Castro, sobretudo.
Além disso a dimensão vitalista, orgânica de Germana Monte-Mór renovou a escultura de Maria Martins ou de Lygia Clark. Sem a mania pós-modernista de citar momentos importantes da história da arte, a artista mantém com a tradição moderna, uma conversa bem-humorada.