Por Nuno de Brito Rocha*
Algum tempo antes da covid-19 obrigar-nos a estar de uma maneira diferente no mundo, a equipe curatorial da 11ª Bienal de Berlim já discutia e propunha novas formas de estar junto e outras possibilidades de encontros. Renata Cervetto, Agustin Pérez Rubio, Lisette Lagnado e María Berríos abriram a bienal há exatamente um ano no bairro do Wedding ao norte da cidade, predominantemente caracterizado por uma população heterogênea com diversas ascendências. Ali iniciaram-se experimentos / exposições / experimentações / expansões / expectativas, inteligentemente abreviadas como exp. 1, 2 e 3 no edifício ExRotaprint. A equipe curatorial ocupou o espaço a partir de setembro de 2019 com um programa dinâmico e em diferentes línguas e que pressupunha não apenas o diálogo, mas mais importante: a escuta. Escutar leva tempo, respeito e cuidado. Assim foi criada, com as pessoas do entorno, uma plataforma solidária pautada na troca e na desaceleração das relações e de eventos como os da bienal – o que foi chamado de slow opening. Alguns dos trabalhos, ideias e processos que ali se iniciaram fazem parte da última parte da exposição, o epílogo, intitulado The Crack Begins Within e que abriu, depois de ser adiado três meses por causa da pandemia, no último final de semana.
Os quatro espaços expositivos do epílogo sugerem quatro capítulos: The Antichurch (KW Instituto de Arte Contemporânea), Storefront for Dissident Bodies (daadgalerie), The Inverted Museum (Gropius Bau) e The Living Archive (ExRotaprint). Em cada um deles, a curadoria sensível e coerente escutou diferentes perspectivas da história e do sistema, mas que são raramente contadas e, geralmente, consideradas fora do próprio sistema. A inclusão de coletivos, teatros e museus na lista de participantes aponta para a mudança subjetiva do ponto de vista do Eu para o Nós e coloca em diversos momentos o movimento feminista e seus desdobramentos na arte e na sociedade, o ser cuir/queer, assim como rituais, religiões e histórias no centro de uma realidade resistente, vulnerável e alternativa. Considerando-se apenas os títulos das quatro partes, a sugestão é de resistência: anti, invertido, dissidente e um arquivo vivo.
Os primeiros trabalhos no KW são “Marcha à ré“, do Teatro da Vertigem em parceria com Nuno Ramos, e “Movilización“, da argentina Mariela Scafati. “Marcha à ré“ é a documentação de uma ação – que aconteceu em 4 de agosto de 2020, na Avenida Paulista, em São Paulo, em meio à pandemia – em que 120 carros movimentam-se no sentido oposto do fluxo, fazendo marcha à ré em direção ao Cemitério da Consolação, onde estava uma reprodução do trabalho “A série trágica – Minha mãe morrendo“ de Flávio de Carvalho, e que mostra os últimos suspiros da mãe do artista. A imagem profundamente agonizante e triste é emblemática da atual política de saúde pública brasileira desdenhosa. Do lado oposto, Mariela Scafati cria 65 figuras antropomórficas em escala real e as deita no chão de uma das salas. Apesar da aparente passividade transmitida pela horizontalidade, a mobilização coletiva protesta para si o espaço e impede que o público entre no mesmo.
Mais adiante, no centro do KW, os trabalhos de Pedro Moraleida Bernardes, Florencia Rodriguez Giles, Young-jun Tak e Carlos Motta exemplificam a anunciada “anti-igreja”: ela é feminina, diversa, queer, gay, fluída. O conflito psicológico, que não tem lugar no nosso sistema, é protagonista: “sentindo um cansaço mortal por representar o humano sem fazer parte do humano“ lê-se no altar de Pedro Moraleida Bernardes. Ou seria essa uma indagação do religioso, que se afastou completamente da realidade diversa e plural, ou seja, que é completamente parte do humano? Na maioria dos trabalhos expostos, as pessoas contribuem ativamente para a manutenção da sua memória e tradição e, ainda que estas existam apenas subjetivamente, elas existem. Além disso, essas pessoas são protagonistas na sobrevivência do seu entorno e são resilientes aos fatores de oposição externos. Trabalhos da polonesa Małgorzata Mirga-Tas e do coletivo espanhol El Palomar também podem ser vistos até 1º de novembro no KW.
Com trabalhos e transições precisas e brilhantes entre as salas expositivas, The Inverted Museum no Gropius Bau também procura alternativas ao que se chama de cânon e conta histórias universais por meio de biografias e trabalhos pessoais. É o que a artista peruana Sandra Gamarra Heshiki mostra logo à entrada em sua pesquisa sobre a lógica dos museus e das coleções europeias chamadas “antropológicas“ ou de origem não ocidental. Quatro novas pinturas da série Cryptomnesia (or in some museums the sun never shines), desde 2015, mostram o conflito entre norte e sul globais no que diz respeito à objetificação do Outro, em diálogo com a instalação The Museum of Ostracism, 2018, em que o display de outras culturas, aqui cerâmicas pré-Incaicas e de origem Inca, também é feito de forma objetificante e alienante. A instalação de Andrés Pereira Paz, composta de esculturas metálicas filigranas, um sensível jogo de luz e sombra e som, conta sobre um pássaro que foge do fogo na Amazônia em 2019, e que é descoberto em La Paz, na Bolívia, sugerindo uma identidade latina marcada pelo deslocamento de pessoas, a impossibilidade da volta, a destruição natural e a resiliência. Há paralelos inteligentes nos trabalhos No antiquário eu negociei o tempo, 2018, de Castiel Vitorino Brasileiro e La Humana Perfecta, 2018, do coletivo La rara troupe, colocados lado a lado, além da belíssima sala onde dialogam trabalhos de Flávio de Carvalho, Käthe Kollwitz e Katarina Zdjelar. A última sala do Gropius Bau é dedicada ao Museo de la Solidariedad Salvador Allende e fecha consequentemente o percurso expositivo com indagações sobre colecionismo, verdade, monopólio geopolítico e solidariedade.
A daadgalerie foca em trabalhos de coletivos ou que, de certa forma, têm raízes nas possibilidades apresentadas pelo feminismo dos anos 60: grupos, ações, performances, happenings e o espaço urbano ganham papel principal na estruturação da discussão em torno da ocupação e da presença na cidade – muitas vezes em forma do teatro e da experimentação coletiva – em que o tecido, a roupa e a fantasia têm papel transformativo na expressão da identidade. Aqui é apresentada a continuação da pesquisa de Osías Yanov que se iniciou no exp. 3, desta vez juntamente com o coletivo Sirenes Errantes, colagens de Francisco Copello dos anos 90 e o trabalho do FCNN – Feminist Collective With No Name. O ExRotaprint permance espaço expositivo da bienal e funciona no epílogo como memória deste mais de um ano de processo e de experimentação.
É impossível não se perguntar o que esta bienal teria sido sem a pandemia. Talvez cheia de programas, visitas, conversas, discursos, empenhada em se aproximar cada vez mais da cidade e das pessoas num longo e profundo exercício de escuta e mudança. Apesar disso, a pandemia mostrou também a discrepância nas situações de vida das pessoas em todas as partes e tornou ainda mais urgente toda a discussão que a equipe curatorial traz à Europa. Cuidadosa e inteligente sem ser dogmática, a 11ª Bienal de Berlim traz-nos um alívio programático. A beleza da identidade visual em aquarela sempre em transformação de Till Gathmann traduz a leveza com que a curadoria apresentou-se à cidade e que trouxe no epílogo. Em um dos textos a equipe avisa: a vida, sobretudo agora, é difícil. Mas ela é também rica e maravilhosa. É preciso dar espaço e saber ouvir outras realidades.
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