"To See the Earth Before the End of the world", Precious Okoyomon. Foto: Roberto Marossi / Cortesia Bienal de Veneza
"To See the Earth Before the End of the world", Precious Okoyomon. Foto: Roberto Marossi / Cortesia Bienal de Veneza

Pavilhão central da Bienal de Veneza (La Biennale di Venezia)
Pavilhão central da Bienal de Veneza. Foto: Francesco Galli / Cortesia Bienal de Veneza

A 59ª Bienal de Veneza, inaugurada para o público no dia 23 de abril, começa histórica. Não só é a primeira depois do adiamento imposto pela pandemia, mas a primeira em que, na exposição organizada pela curadora-chefe desta edição, Cecilia Alemani, a quantidade de mulheres supera a de homens.

Além disso, seus dois principais prêmios foram para mulheres negras: o Leão de Ouro de melhor pavilhão nacional foi para Sonia Boyce, representante da Grã-Bretanha, e o de melhor participação individual para a norte-americana Simone Leigh, por The Brick House, obra que integra a exposição curada por Alemani.

Simone Leigh, "Brick House" na Bienal de Veneza
Simone Leigh, “Brick House”. Foto: Roberto Marossi / Cortesia Bienal de Veneza

The Milk of Dreams, título desta Bienal, faz referência à obra de Leonora Carrington (1917-2011), artista e escritora britânica radicada no México com uma obra marcada pela influência do surrealismo. A exposição de Alemani, dividida entre o pavilhão principal da Bienal, os Giardini e o Arsenale, toma o diálogo com a obra de Carrington como disparador e guia de suas escolhas curatoriais. Nos dois espaços, a influência da vanguarda surrealista é notável, tanto nas poéticas de artistas contemporâneos quanto naquelas históricas, e resulta em uma mostra de grande coerência e de princípios nítidos.

Bem-sucedida no desenvolvimento de seu partido curatorial, Alemani realiza nos dois espaços um amplo inventário de formas oníricas, onde o humano é definido não pela sua diferença em relação à tecnologia e à natureza, mas pela proximidade a esses dois campos de sentido. Assim, convivem lado a lado androides, ciborgues e seres híbridos, com formas fantásticas ou grotescas, bem como animais antropomorfizados e figuras mitológicas e de fábula. Diante das inúmeras perdas e do mal-estar produzido pelos dois anos de pandemia, Alemani desejou oferecer um recuo a espaços de intimidade e de sonho.

Ao contrário de curadores como Moacir dos Anjos, que defende em seus textos a criação de fricções entre as obras no espaço expositivo como forma de expandir seus sentidos possíveis, Alemani optou aqui pela adição, investindo na compilação de poéticas afins como método de trabalho. Em que pese a qualidade de várias das obras trazidas e a consistência da pesquisa desenvolvida, o resultado é uma exposição de poucas dissonâncias, onde o sonho se desenrola em grande parte sem ser perturbado pelos ruídos do mundo.

"To See the Earth Before the End of the world", Precious Okoyomon. Foto: Roberto Marossi / Cortesia Bienal de Veneza
“To See the Earth Before the End of the world”, Precious Okoyomon. Foto: Roberto Marossi / Cortesia Bienal de Veneza

Se confere coerência ao conjunto, a opção pela soma de afinidades produz, por outro lado, um resultado exaustivo e amorfo. Quer se comece a visita pelo Arsenale, quer pelo pavilhão principal, nos Giardini, a quantidade de humanóides, corpos seccionados e seres fantásticos, ao final do trajeto, torna em grande medida indiscernível as particularidades das obras expostas nos dois espaços. Enquanto o recurso a obras históricas tem o mérito de iluminar linhas de continuidade entre poéticas e entre passado e presente – sugerindo, talvez involuntariamente, um futuro sombrio para este nosso tempo –, ele ressalta a repetição de estratégias artísticas e também certo escapismo, perceptível no encantamento de tons futuristas com a tecnologia e na fuga rumo ao sonho como forma de solução ou alívio para os conflitos atuais.

Leite de tigre, leite de zebra

O desequilíbrio entre acolhimento e perturbação da exposição principal se reflete também em vários dos pavilhões nacionais, que desdobram de modo pouco ousado o partido curatorial desta edição. Seres mitológicos e formas dúcteis estão por todos os lados, como se o sono da razão não produzisse mais monstros, mas figuras familiares, com as quais fosse agradável estabelecer contato. As exceções, na exposição da curadoria ou nos pavilhões, oferecem outros leites, explorando o pesadelo e o despertar doloroso em busca de subir um pouco a temperatura desta edição. É o caso do vídeo de P. Staff (Grã-Bretanha, 1987), artista não binárie que retrata com cores ácidas a produção industrial de proteína animal, e as esculturas de Ali Cherri (Líbano, 1976), que remontam a divindades totêmicas de uma humanidade panteísta e agrária (pela sua participação, Cherri recebeu o Leão de Prata desta edição). No mesmo sentido caminham Rosana Paulino (Brasil, 1967), com desenhos de corpos femininos, também ligados à terra, carregados de memórias de grande carga política, e Julia Philips (Alemanha, 1985), cujas esculturas aludem a formas de controle psicológico e institucional exercido sobre nossos corpos humanos.

Entre os pavilhões, merecem destaque os de Áustria e Letônia, que trazem bem-vindas notas de kitsch e ironia para o conjunto desta edição. Com projetos desenvolvidos por duos – Jakob Lena Knebl e Ashley Hans Scheirl (Áustria, 1970 e 1956), pessoas trans, e Skuja Braden (1999), respectivamente – os dois abrem espaço para as dissidências do sonho e da fantasia insistentemente perseguidas por Alemani. De modo igualmente insolente e com título provocador – Peace is a corrosive promise –, o pavilhão do Peru traz um conjunto de obras de Herbert Rodríguez (Peru, 1959) plenas da sujeira do mundo e dos confrontos que esta edição da Bienal de Veneza tenta de algum modo evitar.

Em um evento anacronicamente marcado pelas representações nacionais, é preciso mencionar a participação Sámi, que ocupa o pavilhão dos países nórdicos (Noruega, Finlândia e Suécia), um dos mais bonitos dos Giardini. Povo tradicional transnacional – ocupam também uma península russa, além dos três países mencionados acima –, sua presença na Bienal foi descrita como um ato de “soberania indígena” pelos organizadores noruegueses da representação. Apesar de sua importância e da qualidade das obras apresentadas, o pavilhão falhou em contextualizar os conflitos – territoriais, ambientais, culturais – enfrentados pelos Sámi hoje, contra justamente os Estados que os patrocinam ali. Sua presença, de todo modo, assinala o anacronismo nacionalista da Bienal de Veneza e a urgência de se abrir o evento a povos sem Estado e outras formas de representação.


*Gabriel Bogossian é curador independente e escritor. Sua prática é baseada em colaborações com artistas, curadores e organizações de direitos humanos para a realização de publicações, exposições e outros projetos culturais, com frequência articulando produções de diferentes campos da cultura visual, como a arte, o cinema, o jornalismo e os movimentos sociais. Foi curador convidado da 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil | Comunidades Imaginadas (São Paulo, 2019), da Screen City Biennial 2019 – Ecologies: Lost, Found and Continued (Stavanger, 2019) e do Festival VideoEx (Zurique, 2019) e curador adjunto do Galpão VB (2016-2020). Foi autor da tradução de Americanismo e Fordismo, de Antonio Gramsci (ed. Hedra, 2008), e do capítulo O contato e o contágio, conversa realizada com Ailton Krenak que integra a publicação No tremor do mundo (2020).

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