Reafirmando sua capacidade de resistência, a arte brasileira chega à 59ª edição da Bienal de Veneza com um potente exercício de linguagem, concebido por Jonathas de Andrade especialmente para o pavilhão nacional na mostra centenária. O trabalho do artista alagoano tem como ponto de partida expressões usuais e ao mesmo tempo absurdas, fantasiosas da língua portuguesa, frases e ditos que são reconhecidos pela força do coletivo. São termos que o artista vem colecionando há tempos e que, diz ele, “só funcionam no uso”. Vistos de um ponto de vista literal, remetem a um corpo humano segmentado, despedaçado, mas acabam falando também de um Brasil aflito, à beira do colapso.
Ao chegar ao prédio que abriga as representações da arte brasileira na bienal italiana desde 1964, o visitante se depara com a imagem agigantada de uma orelha. Escultura semelhante foi instalada na porta de saída, numa referência irônica e literal a ideia de “entrar por um ouvido e sair pelo outro”. O projeto idealizado por Jonathas é composto por diferentes intervenções, escultóricas, fílmicas e gráficas (ícones impressos em grandes painéis coloridos e de resolução propositalmente baixa, pixelada), que dialogam entre si, funcionam como alegorias da situação política, social, ambiental do país. Atraem de forma lúdica o espectador para em seguida apresentar camadas mais profundas de crítica e ressignificação da palavra, trazendo uma leitura crua e estarrecedora da realidade. “Bunda Mole”, “Cabeça nas Nuvens” e “Dedo Podre” (esta última na forma de um dedo gigante apertando um botão de votação) são algumas das expressões que compõem o conjunto, perfazendo um caminho tortuoso entre a acidez sarcástica e a sutileza linguística e simbólica, uma das marcas da produção de Andrade. Afinal, como diz ele, “a arte é o lugar da experiência e da radicalidade”. A questão da tradução – já que a grande maioria do público não compreende português – torna-se também uma nova e importante camada de leitura. A decisão de traduzir as frases não pelo seu sentido semântico, mas pelo seu significado literal, agrega uma camada extra de nonsense.
Foi exatamente a capacidade de Jonathas de reconhecer forças culturais e trabalhá-las como invenção do mito que levou o curador-geral da última Bienal de São Paulo e responsável pela indicação da representação brasileira em Veneza, Jacopo Crivelli Visconti, a convidá-lo para conceber e apresentar essa leitura desafiante e visceral sobre o país, num momento em que escapismos formais não fariam sentido. “Como comentar o Brasil diante desse clima intenso sem ser naif ou documental? Creio que outras estratégias têm que ser possíveis”, se pergunta Andrade, que tem entre seus projetos o desejo de debruçar-se sobre as alegorias do carnaval, não como festa do delírio e da fuga, mas como imagens ambíguas, ricas em sua contradição.
Entre o lúdico e o ácido, dois trabalhos se sobressaem com grande destaque nesse conjunto, um grande balão inflável vermelho que ocupa o centro do Pavilhão, intitulado O Coração saindo pela Boca, e o filme Nó na Garganta, dois comentários alegóricos sobre o estado de suspensão e aflição em que vivemos. Enquanto a escultura, pulsante e sensual, aponta para o caráter orgânico, visceral, da experiência espacial, o filme assume um caráter mais militante, associando cenas dramáticas de desastres ambientais, tomadas de natureza e imagens de treinadores e cobras interagindo de forma magnética em um zoológico particular em Maragogi (AL). A sucessão de imagens contrastantes e ambíguas da obra dialoga com O Peixe, filme entre o documento e a ficção apresentado por Jonathas em 2016 na 32ª Bienal de São Paulo e que se tornou um de seus trabalhos mais conhecidos.
Andrade vê nesses trabalhos de caráter colaborativo e que lidam com o aspecto imprevisível da natureza uma certa associação com o realismo fantástico, que busca de estratégias fabulares para falar do local e advoga seu pertencimento à um universo cultural mais expandido, que contempla não apenas o Nordeste (seu ponto de partida) e o Brasil que agora representa, mas de forma mais ampla a América Latina. Outras referências importantes, nem sempre conscientes, se destacam no conjunto. A primeira e mais evidente delas é a aproximação entre o movimento de expansão e contração de O Coração saindo pela Boca e das Bolhas, esculturas infláveis criadas por Marcelo Nitsche no final da década de 1960, ou com a visceralidade fragmentada trabalhada por artistas como Antonio Dias. “Claro que isso tudo está em mim, é uma costura estética que a gente está regurgitando”, diz Andrade.
Há ainda uma bem-vinda sintonia entre o caráter fantasioso, enigmático, das peças de Jonathas e o tema geral escolhido para a edição – adiada em um ano por conta da pandemia – desta bienal. Intitulada The Milk of Dreams pela curadora italiana Cecilia Alemani, a mostra inspira-se em livro homônimo da escritora e artista surrealista Leonora Carrington e apresenta-se como um convite à reinvenção pelo prisma da imaginação. Mas também pretende tornar-se um espaço de questionamento e tomada de posição em relação aos enormes desafios que se colocam ao mundo contemporâneo, a crescente desigualdade, a pandemia e os conflitos incessantes pelo mundo. A 59ª Bienal de Veneza será aberta ao público no sábado, dia 23, e conta em sua exposição geral com cinco artistas brasileiros: Rosana Paulino, Jaider Esbell, Lenora de Barros, Luis Roque e Solange Pessoa.