Feiras de arte não se preocupam apenas com venda, mas também com a criação de valor. É nesse sentido que pode ser vista That Feverish Leap into the Fierceness of Life (o salto febril na ferocidade da vida), mostra organizada pela última edição de Art Dubai, com curadoria de Sam Bardaouil e Till Fellrath, a dupla que atualmente dirige a Fundação Cultural Montblanc. Criada a partir de obras modernistas nos países árabes, a exposição, especialmente por não ter trabalhos à venda, ajuda a criar reflexão e bibliografia para um segmento onde o colecionismo cresce e com alto poder de compra.
A mostra reúne cinco grupos de artistas, que se organizaram no decorrer de cinco décadas, em cinco cidades: Cairo (Egito), Bagdá (Iraque), Casablanca (Marrocos), Cartum (Sudão) e Riade (Arábia Saudita). O título foi extraído do manifesto de um desses coletivos, o Grupo de Bagdá para a Arte Moderna, escrito em 1951.
Nesse sentido, aqui se revela uma importante iniciativa da feira, já que dá visibilidade ao circuito internacional uma produção local bastante desconhecida, como é o caso da Escola de Casa Branca. Ela reuniu artistas radicais, em 1966, e apenas três anos depois eles expunham no espaço público como forma de não estarem vinculado a uma elite.
No Marrocos, segundo afirma Toni Maraiani no catálogo da mostra, “longe de se afirmar em uma escola de estilos, a arte moderna se tornou o espaço de questionamento e abertura”. Entre os destaques desse grupo na exposição, estão obras de Mohamed Hamidi, mais próximas da arte pop e com formas altamente eróticas, realizadas nos anos 1970, portanto já em sintonia com a arte contemporânea existente na época. Além dele, Bachir Demnati, Mohammed Melehi e Mohammed Kacini também são vistos em cores e formas pop, mas sem apelo sexual.
Hamidi e seus conterrâneos, contudo, são a exceção na exposição que apresenta em verdade um modernismo tardio, já que todos os grupos se mobilizam após os anos 1950, depois da Segunda Guerra, quando a arte contemporânea já estava, de fato, tendo início. Entre tentativas de inclusão no canon moderno, que museus e historiadores da arte andam empreendendo como forma de construir uma identidade pós-colonial global, os curadores preferem apontar as cinco escolas como “testemunhos da diversidade” contra a noção do mundo árabe como um “fenômeno monolítico”.
Assim, segundo Bardaouil e Fellrath, as cinco escolas são exemplo das “contradições, antagonismos, desafios e realizações de várias expressões do modernismo através de um longo século de negociações rigorosas e criações.
De fato, sem o peso do academismo, portanto sem ter que lutar contra algo, esses grupos aproveitam as liberdades modernistas da representação, em contextos de abertura de seus próprios países ao Ocidente.
No geral, quando vistos em comparação com o modernismo “padrão”, os trabalhos expostos são um tanto opacos, sem surpresas. Contudo, o mérito da mostra está justamente em dar visibilidade em um contexto internacional uma produção que dialoga intensamente com questões regionais, seja nas formas, nos conteúdos ou mesmo nas técnicas.
É o caso do grupo egípcio, por exemplo, que aliava à entrada na modernidade a discussão sobre arte com caráter nacional, algo semelhante ao modernismo brasileiro. No texto “Em direção a uma arte que é especificamente egípcia”, assinado por vários membros do The Contemporary Art Group, do Cairo, entre eles Abdelhadi El-Gazzar, buscavam refletir o que seria uma “arte nacional”. Para El-Gazzar isso seria: “entender nossos específicos problemas e ter a capacidade de apresenta-los com elementos do ambiente e uma mentalidade moderna”. Em uma de suas pinturas na mostra, “A família”, se vê como o peso da tradição local é imenso, já que os adultos parecem muito maiores que a criança na pintura e eles carregam tantos símbolos da cultura local que sequer conseguem ter individualidade, sem dúvida uma crítica moderna à condição local.
O jornalista Fabio Cypriano viajou a Dubai a convite de Art Dubai