Na entrada, a exposição alertava os visitantes: pense bem antes de entrar neste recinto. O material exposto pode lhe parecer ofensivo (…). Se decidir entrar, aja com responsabilidade: aceite o exposto com naturalidade. Disfarce, se for necessário. Contudo, a mostra não apresenta performances com corpos nus ou pinturas com crianças que assustam grupos conservadores.
Segundo Rosângela Rennó, artista e autora da advertência, sua nova mostra na galeria Vermelho, “Nuptias”, buscava por em xeque a instituição tradicional do casamento e suas representações. “Algumas pessoas poderiam considerar as intervenções [em fotografias] cruéis”, ironiza. “Quero seja então para celebrar a desconstrução”.
Desde o início de sua trajetória, nos anos 1980, Rennó vem refletindo sobre a natureza da imagem ao ampliar as possibilidades estéticas e simbólicas da fotografia. No caso da série “Nuptias”, que batiza a exposição, o interesse da artista foi o de questionar justamente a representação tradicional de casais convencionais a partir das correntes discussões sobre gênero. “Quis usar a imagem do casal de noivos para discutir as questões de papéis que, em princípio, são destinados a cada um na futura família nuclear. O que que é hoje a união entre duas pessoas? Totalmente diferente do que já foi”, afirma.
Ela realizou toda sorte de intervenções (“não pintava há quarenta anos!”) sobre fotografias de casais anônimos e fotopinturas inacabadas ou em mau estado de conservação. Entre rabiscos, cortes e adição de objetos, os casais surgem carregando diversas referências da cultura pop, história da arte, iconografia mexicana, indiana, embaralhando e confundindo clichês do masculino e feminino com barbas e maquiagens. “Tudo decorre do meu envolvimento com a fotografia propriamente dita. A partir do tipo de imagem, tamanho, composição, análise da faixa social e econômica a qual se casal pertence. É da observação da imagem em si e dela enquanto objeto, materialidade”, explica.
Enquanto alguns exemplares da série tecem comentários quase anedóticos, como o retrato de Batman e Robin, outros respondem diretamente às polêmicas do campo político – caso de “Bela Recatada e do Lar”, cujo título, segundo Rennó, alude ao tom misógino de uma declaração do presidente interino acerca do papel da mulher na economia do país. Além disso, os recentes episódios de censura e ataques ao circuito artístico por grupos conservadores contaminaram seu processo criativo. “Eu já tinha trabalhado em 80 Nuptias e veio essa bomba [as manifestações de ódio e tentativas de censura]. Os congressistas têm uma cegueira para o que acontece no mundo de hoje. Desconhecem o que são práticas artísticas contemporâneas, não tem o hábito de ver e não enxergam, não sabem discernir o que é uma ação estética de alguma coisa comportamental. A aberração está neles. Essa estreiteza tinha que ser comentada de alguma forma e foi inevitável”. A artista diz que a série permanece aberta, a depender de como seguir a agenda.
A despeito da alta voltagem política, operação já esperada diante da trajetória de Rosângela Rennó, a exposição ganha outro fôlego e, de fato, contornos celebrativos ao rememorar obras que se tornaram pedra de toque na história de artista. Ela apresenta séries inéditas em torno de projetos que completam 20 e 25 anos de existência, reafirmando a passagem do tempo e a construção de memórias como um dos pés de sua poética.
Prata e porcelana
Uma história de amor, ou quase isso, inaugurou o projeto “Arquivo Universal”, em 1992, quando a artista iniciou a coleção de vasta quantidade de negativos, fotos deterioradas, retratos de jornais e relatos com grande expressividade narrativa. Em 2003, as imagens renderam uma grande exposição individual no CCBB do Rio de Janeiro e foram reunidas em uma publicação da editora Cosac Naify, ocasiões que firmaram o papel de destaque de Rennó no panorama da fotografia brasileira. Em “Bodas de Prata”, a artista grava em pequenas placas comemorativas deste material as seis histórias que foram o pontapé do arquivo. A primeira gira em torno de uma camponesa que deseja reaver sua metade do retrato de casamento ao se separar.
No conjunto inédito “Bodas de Porcelana”, Rennó celebra 20 anos da série “Cerimônia do Adeus”, exibida na VI Bienal de Havana. A homenagem consiste na mesma quantidade de casais de pratos de porcelana de diferentes origens culturais carimbados com o nome da série. É que as imagens representam aquilo que a artista nomeia de “ritual fotográfico”: ao fim da cerimônia, casais cubanos posam dentro de carros de modelo americano da década de 1950, símbolo do imperialismo ianque para a ilha comunista. “Este arquivo veio de uma única fotógrafa de Havana que meu deu os negativos deteriorados em 1994. Quando voltei em 1997, ela já tinha ido embora, foi um pouco profético. O nome [da obra] diz a respeito àquele momento em que Cuba passava”, relembra.
Utopia
Ainda neste ano, Rennó prepara um novo corpo de imagens que ocuparão o Instituto Moreira Salles do Rio até meados de abril. A artista novamente se volta para assuntos urgentes da pauta nacional ao reunir, ao largo da mostra, fotografias enviadas por e-mail, instagram e whatsapp de localidades da capital fluminense com nomes utópicos. “Certas zonas cariocas cresceram muito nos últimos anos em função dos eventos que a cidade recebeu. A exposição nasce de um desejo de conhecer melhor a cidade onde vivo há 28 anos”, diz a mineira.
É no desmanche do instante fotográfico e nas possíveis recomposições da imagem que Rosângela Rennó segue expandindo as fronteiras da fotografia, demonstrando que a arte, a despeito do que pensam alguns, é campo essencial para refletir e assentar as transformações do mundo. Sobre o futuro das alianças?
“A celebração existe porque, no fundo, eu ainda acho que é o amor que vai salvar o mundo. É a coisa mais piegas que há, mas ainda é o que faz a humanidade crescer e pode nos salvar da barbárie”, diz Rennó.