O artista plástico brasileiro Tunga (1952-2016). Foto: Daniela Paoliello
O artista plástico brasileiro Tunga (1952-2016). Foto: Daniela Paoliello

Nova York recebe a partir deste sábado (13/1) a primeira exposição com obras de Tunga nos Estados Unidos desde a sua morte, em 2016. Vê-nus tem curadoria de Paulo Venancio Filho, que entre o fim de 2021 e o primeiro semestre do ano passado esteve à frente de uma grande retrospectiva do artista, realizada no Itaú Cultural e no Instituto Tomie Ohtake, em parceria com o Instituto Tunga. A mostra em solo norte-americano acontece na Luhring Augustine, galeria que desde 1998 representa o brasileiro, e reúne mais de 60 trabalhos, muitos deles inéditos. A última exposição de Tunga realizada lá aconteceu em 2014.

Segundo Clara Gerchman, co-fundadora e gestora do acervo do Instituto Tunga, criado em 2017, e que tem como diretor Antonio Mourão, filho único do artista, esta é uma grande oportunidade de poder apresentar as obras bidimensionais de Tunga, segundo ela uma etapa muito importante da trajetória do brasileiro, porém pouco vista.

“A mostra traz pontualmente obras escultóricas, mas o grande corpo dela é composto pelas bidimensionais. Como estamos trabalhando com o acervo, que é a fonte primária, temos descoberto inúmeras fases de um conjunto muito diverso. Nossa missão tem sido justamente essa: trabalhar com um material inédito para o público”, explica Clara à arte!brasileiros, adiantando que ainda neste ano será lançado o catálogo raisonné com os trabalhos bidimensionais de Tunga, um projeto iniciado em 2021.

Venancio Filho destaca que o Instituto Tunga fez questão de levar a Nova York a escultura Vê-nus (1976), que empresta seu nome à mostra, e tinha sido vista poucas vezes, uma delas na própria cidade norte-americana; outra, em São Paulo. “É um trabalho importantíssimo na obra dele, e eu construí toda uma situação em torno desse trabalho, com desenhos da mesma época, mesclando ainda criações recentes com outras mais antigas”, explica. Alguns dos desenhos presentes na Luhring Augustine, por exemplo, haviam sido mostrados originalmente na primeira individual de Tunga, realizada em 1974, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio).

O curador conta ainda que, quando foi convidado para conceber a mostra no ano passado, ele pensou em fazer o que seria “uma sala de museu do Tunga”, onde o espectador poderia entender os aspectos fundamentais de sua obra, questões como o corpo, a sexualidade e os fetiches. “É uma exposição que também traz a multiplicidade dos materiais por meio dos quais o Tunga expressou sua imaginação erótica, grande motor de seu processo criativo”, afirma Venancio Filho, que conheceu o artista quando tinha apenas 19 anos de idade.

Como na retrospectiva de 2021-2022, Venancio Filho não se preocupou em estabelecer uma hierarquia tampouco uma cronologia entre as obras apresentadas. “Isso vai contra o espírito da obra do Tunga, que é algo como a fita de Möbius [um símbolo do infinito, criado em 1858 pelo matemático e astrônomo alemão August Ferdinand Möbius], que vai e volta, elementos que aparecem e reaparecem ao longo de sua trajetória”.

Em exibição, estão desde os primeiros desenhos de Tunga, abstratos – “mais gestuais, menos figurativos”, ressalta o curador –, a trabalhos mais emblemáticos do artista, como os Eixos Exógenos, perfis femininos recortados a partir de troncos de madeira, até sua última série de desenhos, From La Voie Humide e as esculturas da série Morfológicas, ambas de 2014Entre as surpresas prometidas pelo curador estão três desenhos inspirados na obra de Tarsila do Amaral, “pouquíssimo vistos”, “coisas muito raras”, criadas na virada dos anos 1970 para os 1980.

A escultura Vê-nus, que nomeia a mostra, foi a primeira obra de grande dimensões de Tunga, lembra o curador. Composta de borracha, lâmpada, material elétrico, metal e mosca de plástico, mede 183 x 250 x 93 cm. “Ela tem esse título que revela muito do pensamento erótico dele, num artifício com o nome em que ele separa ‘vê’ de ‘nus’, com um hífen. E, para mim, quando falávamos sobre esse trabalho, eu via uma certa relação com O grande vidro [1915-1923], de Marcel Duchamp, na separação entre a noiva e os seus pretendentes, que Tunga reconfigura. Porque o Tunga é de um período em que o Duchamp começa a influenciar a arte brasileira. Mas, a maioria foi influenciada pela via conceitual, dos ready made, como é o caso de Cildo Meireles. Ao passo que Tunga foi tocado pelo lado surrealista e pelo erotismo de Duchamp”, explica.

Venancio Filho espera que a exposição, após uma ausência de oito anos das obras de Tunga do cenário norte-americano, e quase quatro, do internacional – em 2019, a galeria Franco Noero, da Itália, realizou uma individual com seus trabalhos – recoloque o brasileiro dentro da importância que ele tem para a arte contemporânea. E que as obras ali apresentadas possam interessar a grandes instituições nos Estados Unidos ou na Europa. Vale lembrar que Tunga já está presente em instituições estrangeiras como o Guggenheim, o Art Institute of Chicago, o Reina Sofía, a Tate e o Pérez Art Museum Miami, entre outras.

Para Roland Augustine, sócio-fundador da galeria ao lado de Lawrence Luhring, Vê-nus marca uma retomada e também um recomeço da representação do artista pela galeria.

“Fizemos cinco exposições individuais de Tunga ao longo dos últimos 25 anos. Mas incluímos suas obras em muitas coletivas durante esse tempo. A última, de 2014, era uma continuidade do trabalho em que ele estava focado à época, com o uso de cristais, de cerâmica etc. Agora, nosso objetivo era mostrar aspectos de sua obra que muitos não conhecem, a saber, seus desenhos, ao lado de esculturas que estão de alguma forma relacionadas a eles”, destaca Augustine, que também representa Lygia Clark nos EUA.

O galerista conheceu Tunga por recomendação do curador francês Marc Pottier, após a 22ª Bienal de São Paulo, de 1994, em que o artista havia apresentado Cadentes lácteos, um conjunto gigantesco de peças de ferro fundido, em forma de sinos, banhadas por uma matéria viscosa e esbranquiçada. À época, Augustine estava ajudando a família de colecionadores Halle, dos EUA, a montar um acervo de obras latino-americanas, e a obra foi adquirida. Em 1997, ela foi emprestada ao museu do Bard College, para uma exposição sobre o artista.

“Aquilo foi um batismo de fogo. Imergir no trabalho de Tunga. E, desde essa minha primeira experiência e exposição ao trabalho dele, sua obra permaneceu sendo um mistério para mim, porque seus trabalhos não são tão acessíveis, devido à sua natureza poética”, conta o galerista. “Quando começamos a mostrar suas criações em Nova York, sabíamos que eram singulares, esotéricas e autênticas. E elas não se tornaram menos, porém mais complexas ao longo do tempo. E nunca houve de fato um mercado comercial para elas”.

Segundo Augustine, no entanto, a recepção crítica sempre foi positiva em Nova York. Tunga era benquisto por curadores, mas não por colecionadores, o que era um pouco frustrante para o artista. No Brasil, as obras de Tunga ainda alcançavam bons valores, diz ele, mas não se chegava à metade dessas cifras nos EUA. No fim dos anos 1990, por exemplo, a galeria vendeu apenas uma obra da série Eixos exógenos, por cerca de US$ 35 mil na Fiac (Foire internationale d’art contemporain), de Paris, valor que o galerista não considera à altura da produção artística do brasileiro.

O galerista compara Tunga a Bruce Nauman, em termos mercadológicos. Nos anos 1960, afirma, somente quem gostava das criações do artista norte-americano eram seus colegas de ofício. Apenas entre o fim dos anos 1970 e o começo da década seguinte, os trabalhos de Nauman teriam começado a ser apreciados e adquiridos por museus. Ele imagina que, para Tunga, sejam necessários mais dez a 15 anos para que sua obra seja assimilada e compreendida em maior grau.

“Há muitos anos eu torço para que um museu nos EUA abrace a ideia de realizar uma retrospectiva de Tunga. Com essa exposição, esperamos que o curador de uma dessas instituições pense: ‘Meu Deus, agora eu entendo por que este homem tem de ser mostrado de uma maneira significativa ao público'”, diz Augustine.

UMA PRIMEIRA IMPRESSÃO

Desde 2019 curadora de arte latino-americana do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), Beverly Adams começou a acompanhar a carreira de Tunga há mais de 25 anos. Em 1998, fez uma exposição solo do artista no Phoenix Art Museum, com desenhos e a escultura Cadentes Lácteos (1994). Beverly esteve já na galeria Luhring Augustine e destaca a qualidade da seleção de obras e a montagem da nova mostra.

“Ela dá ao espectador uma percepção do arco da carreira de Tunga, de muitos de seus temas e de suas inquietações, mas de uma forma bastante sutil e íntima, por meio dos desenhos e das esculturas escolhidas. Eu aprendi muitas coisas novas”, afirma a curadora. “É muito bom ter seu trabalho de volta a Nova York, na galeria que tem sido uma apoiadora fervorosa de Tunga ao longo dos anos, e permitir com que mais pessoas possam aprender a respeito deste grande artista e de seu universo poético, que entrelaça de maneira brilhante ideias e materiais em sua abordagem singular do fazer artístico”.

Beverly ressalta também a presença de duas criações do artista no acervo do MoMA: Ão e Cooking crystals. “São duas instalações-chave de Tunga, uma de 1981 e outra, feita entre 2006 e 2009. É ótimo ter obras de dois períodos tão diferentes da trajetória dele. Suas criações enriquecem nossa crescente coleção de arte brasileira, que está em constante diálogo com outros trabalhos do acervo”, conclui.

 

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