Por Nicolas Soares
A urgência das reivindicações pela recolocação dos sujeitos e suas identidades dissidentes no interior da cultura se apresentam como frontes de batalha nos últimos anos e apontam para uma definitiva reestruturação sociocultural em muitas áreas, sobretudo na arte, a partir do fortalecimento das epistemologias das margens em direção ao centro. Sujeitos marginalizados, racializados, estereotipados pela herança histórica colonial europeia e suas afluências nos territórios emergentes – filhos da colônia –, recobram seus per(cursos)(calços) nas páginas solenes da História. A revisão histórica impulsionada pela tomada de uma epistemologia do sul (para todas e todos aquelas e aqueles que foram oprimidas e asfixiados por apenas uma possibilidade de ser/estar no mundo) está em curso, na tentativa de arrebentar as barricadas da Instituição da Arte e Cultura, porque é manifestação (no que tange ao sintoma e ao conflito) nas ruas e no pessoal como político. O globo geopolítico está reorientando seu eixo, e seus hemisférios se desqualificando das coordenadas de latitude e longitude cartesianas.
Por um lado, revolvemo-nos na estrutura em que os impedimentos sócio-históricos, que tentam conformar determinadas identidades, reforçam imagerias da racialização fragilizando sujeitos ao decorrer da História da Cultura. Em contraponto, percebemos as fricções, torções e rupturas no sistema da arte através de eventos emancipatórios elaborados por esses sujeitos. Em exercício de superar o figurativo, por exemplo, delineado por Debret, Rugendas, ou Christiano Júnior e tantos outros artistas coloniais de outrora, em que por tempos criaram representações de certa tipologia da imagem. Artistas negras/negros, indígenas e não-brancas/os, suas produções e as atenções recebidas continuam encobertas pelo paradigma do primitivismo [1], menos como forma e linguagem que criam, e sim, mais, ao que parece, como reforço da folclorização de um arcabouço colonial.
Superar esta representação é dar cabo ao figurativo sob desígnio da iconografia. E da iconografia, no sentido de estandarte. Pois ainda a imagem é o engodo que orienta os sujeitos, as políticas e a organização de uma sociedade. A expectativa que a arte atual pesa sobre artistas negras/negros e indígenas, quer corresponder imagem x imaginário, e ainda determina quais e como imagens são (re)produzidas e consumidas, além de quais e como artistas devem produzir. A tomada de posição que artistas negras/negros e indígenas manobram no sistema da arte hoje deve sempre se opor à necessidade institucional de responder a uma iconografia que ainda exotiza corpos, modos de viver, espiritualidades e costumes por uma conduta do bom selvagem e do nós aqui por eles lá.
A alforria da imagem deveria escapar em direção a uma mobilização iconoclasta [2]. Menos a ilustração de cânones em seu caráter estereotipado, e sim, a supressão da imagem salvadora que extermina determinados sujeitos. A Representação já esteve em questão ao decorrer de uma História da Arte Ocidental, e sua aniquilação já foi meta a favor de uma arte pura, técnica e livre da narrativa iconográfica. O concretismo, como movimento artístico, reforçou as formas, os planos, as cores, os materiais, a espacialidade, e, principalmente, a não-subjetividade da arte como arte-mesmo. Nada dar-se a ver mais. A objetividade do quadrado preto sobre fundo branco, porém, escondia o requinte da representação em seu desempenho narrativo. Ainda era figura, ainda em sentido devocional à imagem.
A reelaboração da narrativa de si parte da concretude em que sujeitos racializados por este regime das imagens elaboram sua existência. É CONCRETA a segregação, como é CONCRETA a não-possibilidade de subjetivação, de individualização e dos afetos. CONCRETO armado sobre a história de apagamento; da não-imagem. CONCRETO estrutural que edificou a subalternização de uns a favor de poucos, justificada pela imagem. A estes artistas hoje, o CONCRETO se apresenta na fragmentação do corpo histórico na tensão por uma antianatomia [3] que seja antítese à Grande Representação. Este novo concreto se alia às experiências, ao cotidiano, aos materiais, às corporalidades não em contribuição à representação iconográfica da imagem de si – como reforço positivo à negação histórica do se ver –, mas ao exercício de deter a imagem, contudo não o discurso.
Entendemos que a emergência da produção de artistas negras/negros e indígenas deve responder para além de uma “agenda institucional identitária”, mas se estruturar no campo e no sistema da arte como fundamentais para os avanços de epistemologias outras, que tangenciam a hegemonia organizada por séculos de uma História da Arte ocidentalizada e europeizada. Pois, se no embate da arte está a própria arte – da vida como arte –, como nos reencontrar em saída à memória e à história? ✱