“Apesar de nossas conversas sempre começarem com amenidades, todas as vezes o caminho fluía para o assunto pandemia. Estava sendo muito dolorido este momento. No tempo em que estive com ela, somente na rua onde ela mora, seis amigos dela faleceram por Covid-19. Numa das semanas que estive navegando pelos rios de MARIWÁ, ela foi contaminada pelo vírus, ficamos duas semanas sem se falar. TIVE MEDO”, escreveu o artista-jaguar, como se autodenomina Denilson Baniwa, em uma das paredes de sua ampla instalação Nhíromi.
No centro de Nhíromi está uma canoa do Rio Negro, a região do Amazonas onde nasceu Baniwa. Seu relato aborda várias outras questões em torno da visita à sua avó, mas ao expor o medo dos tempos da pandemia ele traz uma importante contextualização a O rio é uma serpente, nome da terceira edição de Frestas – Trienal de Artes, organizada no Sesc Sorocaba.
Com 53 artistas e coletivos selecionados por Beatriz Lemos, Diane Lima e Thiago de Paula Souza, é a primeira vez no Brasil que uma mostra do tipo bienal tem na direção artística um time negro, um mérito do Sesc que, sem dúvida, merece reflexão das outras mostras do mesmo tipo como a Bienal de São Paulo e a do Mercosul.
Prevista para ser inaugurada em 2020, Frestas acabou sendo prorrogada para este ano, carregando assim os vários temores do que significa organizar um evento presencial em um país que se aproxima de 600 mil vítimas de uma política genocida. Assim, mesmo que de forma discreta, a contextualização dá parâmetros aos visitantes que mostram que Frestas não é apenas mais uma mostra, mas uma exposição concebida em tempos de guerra.
A guerra, é verdade, não ocorre só aqui e muito menos se restringe aos anos 2020/21, como se percebe na instalação A dívida impagável, de Musa Michelle Mattiuzzi, uma versão sonorizada e não literal do livro de mesmo nome da brasileira radicada no Canadá Denise Ferreira da Silva, organizada no Brasil pela Oficina Imaginação Política e a Casa do Povo e disponível gratuitamente para download.
A grande maioria das obras de Frestas está disposta no subsolo do Sesc e a instalação de Mattiuzzi é das poucas próximas à entrada do edifício, um ambiente que parece um espaço festivo, todo espelhado e com luz efusiva, mas que se nutre do texto contundente sobre o mundo atual e “o que se torna acessível à imaginação, o tipo de abertura ética que pode ser vislumbrada com a dissolução do jugo do Entendimento e a entrega do Mundo à imaginação”, nas palavras da própria autora.
De certa forma, várias obras da mostra participam dessa espécie de jogo de sugestões que se afasta de abordagens explícitas ou militantes para buscar poéticas mais sedutoras, mas não por isso menos políticas. É o caso de Panorama Catatumbo, da colombiana Nohemi Perez, um imenso painel composto por desenhos de carvão em telas de pintura. De longe, a imagem da floresta é encantadora, mesmo em preto e branco, mas quem se aproxima percebe discretos desenhos de cenas com armas, apontando para a violência persistente da região de Catatumbo, área fronteiriça entre Colômbia e Venezuela.
Essa estratégia é semelhante na obra de Pedro Victor Brandão, com uma pintura em cores fortes que se parece abstrata, mas na verdade é um possível gráfico sobre endividamento e inadimplência no Brasil. O mesmo ocorre com o trepa-trepa de Rommulo Vieira Conceição, instalado na área externa do Sesc, que parece um brinquedo de parque infantil, mas na verdade é uma composição disfuncional que tem em sua construção até elementos que podem machucar.
A mostra concentra a maioria das obras no subsolo do Sesc, onde de fato é a garagem do edifício, o que acaba se revelando um espaço adequado. A curadoria não buscou esconder essa característica, reforçando assim a força do que não está dentro das convenções.
O rio é uma serpente se configura assim como uma mostra com forte apelo visual – o muro de caixas-de-fósforos de Antonio Társis, Vermelho como brasa, se insere na mesma lógica, assim como a potente instalação de desenhos de pássaros de Laura Lima –, que se aprofunda em temas urgentes sem ser panfletária. Com isso, a exposição se aproxima de uma das mais importantes com tal proposta, a documenta X (1997), em Kassel, na Alemanha, intitulada Politics Poetics e organizada pela francesa Catherine David. Já tem até gente do circuito apelidando Frestas de “Sorokassel”.
Independente de brincadeiras, é incontornável confirmar que, apenas com três edições, o Sesc consolidou um laboratório de arte contemporânea importante, fora do circuito convencional, dando destaque a curadores e curadoras arrojados, compensando a dificuldade de representação das outras mostras de caráter bienal do Brasil.