Como se não bastasse saber da nossa fragilidade, é fato que estão vindo à tona, como nunca, os embates que cedo ou tarde apareceriam por conta da desigualdade brutal que foi construída ao longo dos séculos 19, 20 e 21. O brutal processo colonizador segue excludente em novas roupagens e, pior, faz retroceder muitas conquistas duramente alcançadas após a Constituição de 1988.
Na arte, isso apareceu no grito dos artistas indígenas e negros que, crescendo na sua representatividade, se encontram com pressões inerentes às barreiras culturais próprias da dicotomia que existe quando se trata de fazer arte, compartilhar arte e comercializar arte. A voracidade perversa do circuito coloca tudo em questão: não basta escrever, tem que vender; não basta pintar, tem que vender; e, para vender, nem sempre a melhor obra é a que dá para pendurar na parede.
É só observar obras levadas por galerias para a Art Basel Miami, ostentando a cor para garantir uma espécie de condomínio da alienação.
Porém, como vivemos tempos agudíssimos, tudo isso está em questão e até os grandes colecionadores se rendem à ideia de que não dá para disfarçar. Com isso, crescem a presença das mulheres, indígenas e negros nas coleções. São conquistas que vieram para ficar, apesar das reclamações do patriarcado privilegiado.
No meio das tréguas que o vírus e suas variantes nos dão, junto a uma maior vacinação, houve oportunidade de sair novamente, entrar em contato com obras, visitar novas cenografias e até viajar e dar uma olhada na cena internacional.
Assim, acompanhamos artistas brasileiros que transitam na nova cena internacional, que estão experimentando novos projetos no interior do Brasil e que formam parte da razão pela qual sempre foi válido investir na cultura brasileira, singular e prolífica.
Até a coleção de François Pinault, onipresente em Veneza e uma das maiores do mundo, ganhou espaço em Paris com a exposição Overture, na reformada Bourse de Commerce (Bolsa de Comércio), incluindo obras do brasileiro Antonio Obá – nascido em Ceilândia, cidade satélite de Brasília. Julio Villani, com sua enorme trajetória, expõe em Paris e Nova York; No Martins está na maior galeria de Chicago, Mariane Ibrahim, agora com sede também em Paris; Maxwell Alexandre, no Palais de Tokyo, e o gravador Santidio Pereira expõe em Shangai.
Nesse sentido, é dramático ver a contradição que existe entre a realidade e a miséria ideológica dos políticos que hoje nos governam, que iniciaram uma cruzada de precarização das instituições e empresas dedicadas à cultura e a difusão da cultura. Ouvimos impávidos o secretário de cultura Mario Frias – vinculado atualmente ao Ministério do Turismo, que se “responsabiliza” pela cultura, suas estratégias e seu orçamento no Brasil –, dizer que lutará com todas suas forças para que não avance a recém-aprovada Lei Paulo Gustavo, que prevê uma verba de quase R$ 4 bilhões para o setor cultural em Estados e municípios.
Em longa entrevista nesta edição, Danilo Santos de Miranda, que preside o Sesc-SP desde 1984 e é responsável por inúmeras atividades permanentes de altíssima qualidade em mais de 40 unidades no Estado, comenta:
“É uma sequência de pioras progressivas, infelizmente. A lei Rouanet é uma lei invejada por outros países do mundo (…) Havia problemas sobretudo quanto à questão geográfica e quanto à uma mistura entre o publicitário e o cultural mas, ainda assim, era uma lei que tinha ampla participação de empresários, artistas, promotores culturais, criadores e gestores, com uma comissão representativa da sociedade. Quando você corta isso e torna tudo decidido unicamente por uma pessoa, seja quem for, você está andando para trás.” (leia a entrevista com Danilo Miranda)
É necessário falar, mesmo que alguns se sintam incomodados, que a arte, como parte da cultura e da educação geral de uma sociedade, precisa pular fora dos muros dos grupos ideológicos e financeiros para poder ser grande.