Existe hoje um desafio para a cultura como um todo, que entendemos que passa pelo aprofundamento da discussão sobre como a cultura pode avançar no Brasil e no mundo, no escopo de um ambiente democrático.
Porque, de que ambiente democrático falamos? Que democracia defendemos após ter confirmado que prevalece uma “democracia” que continua não reconhecendo o papel devastador de séculos de racismo, de opressão e autoritarismo, e onde os resultados do colonialismo continuam excluindo apenas com novas máscaras?
Que democracia é essa que permite aparelhar instituições com grupos repressivos, que faz questão de cercear a cultura e a palavra e estimula certos grupos religiosos para se instalarem em cargos de poder, num estado supostamente laico.
De dez anos para cá, se intensificaram os debates sobre várias das lutas identitárias e das grandes minorias do nosso país e no mundo. A participação cada vez mais relevante do papel da mulher na sociedade, em defesa do direito inalienável ao seu corpo, seja na defesa do aborto, seja contra o assédio; seu direito à igualdade de reconhecimento econômico e de participação politica. Seu empoderamento cada vez maior tem sido amplamente debatido e noticiado. Tudo isso coloca em pauta a necessidade de maior presença da mulher nos diferentes estamentos da sociedade.
Exposições como Mulheres Radicais na Pinacoteca (Radical Women, nos EUA), representantes na literatura como Paul Preciado e Judith Butler; ganhos constitucionais em defesa do aborto em vários países, possibilitaram enormes avanços na defesa desse papel.
A discussão em defesa da liberdade de escolha de gênero, liderada pelas comunidades LGBTQIA+, as questões ambientais, a luta pela autonomia das comunidades indígenas e pelo reconhecimento das suas terras e, por fim, uma verdadeira aceitação por parte da sociedade sobre a necessidade de encarar o debate, no Brasil, sobre a brutal história do racismo – negado e apagado por séculos no passado e persistente em nosso presente colonial, capitalista – trouxeram um fortíssimo movimento paralelo às tradicionais governanças institucionais e corporativas.
Museus se viram pressionados a encarar a contratação de profissionais negros e negras, curadorias e temáticas estudaram artistas e escritores. Foram excepcionais as exposições coletivas Histórias afro-atlânticas no Instituto Tomie Ohtake e no MASP.
Editoras começaram a publicar verdadeiras joias literárias que tinham sido esquecidas, como os livros de Carolina Maria de Jesus, que também ganhou mostra no Instituto Moreira Salles, em São Paulo. Também são exemplos Pele Negra, Máscaras Brancas, do psiquiatra e escritor francês-caribenho, Frantz Fanon; Tornar-se negro, de Neusa Santos Souza; ou Torto Arado, o romance do escritor Itamar Vieira Junior que acabou de ser adotado pela secretaria de educação da Bahia.
O mercado de arte, claro, “descobriu” a importância da arte negra brasileira e começou a prestar atenção em excepcionais artistas nacionais que foram rapidamente reconhecidos ao serem descobertos pelo público internacional e hoje estão em coleções como Inhotim, em Minas Gerais, ou Pinault, em Paris.
O professor e escritor Márcio Seligmann-Silva afirma em seu artigo nesta edição:
“Não existe violência física que não esteja acompanhada de violência simbólica. Estudar a história da arte afro-brasileira implica se emaranhar em continuidades centenárias de histórias de violência simbólica e física. Implica também uma possibilidade de se vislumbrar de modo claro não só a “dialética da colonização”, de que nos fala o dramaturgo e diretor teatral paulista José Fernando Peixoto de Azevedo na epígrafe, mas a própria “dialética do esclarecimento”, que Theodor Adorno e Max Horkheimer procuraram descrever enquanto a Europa ardia em chamas na primeira metade dos anos 1940.” (Adorno & Horkheimer 1986)
Após anos de ditadura, votar, claro, foi uma conquista, mas parece não ser suficiente. É necessário criar ferramentas de controle para a participação dos corpos, sugerir sistemas e debates em cima da importância de criar mecanismos econômicos para uma sociedade mais igualitária, criar ferramentas de reparação.
Uma das maiores ensaístas e pensadoras latino-americanas, Beatriz Sarlo, que neste mês faz 80 anos, falou em entrevista à Ñ REVISTA DE CULTURA, 964, do Jornal Clarín da Argentina:
“O julgamento das três Juntas Militares, que foi encarado por pouquíssimos países após as ditaduras militares, foi um momento fundamental e de grande fortaleza ética da democracia, e requereu grande valor cívico, ético e subjetivo.”
A função do testemunho tem uma dimensão reparatória, na medida em que verbaliza e produz o reconhecimento social de uma história traumática. No Brasil, depois de dez anos, demonstrou-se que a criação de cotas na universidade deu certo, permitindo que grandes setores da população negra conquistassem melhoras no ensino e nas suas condições de emprego e salários.
Ao mesmo tempo iniciou-se um movimento em vários países europeus restituindo obras que foram levadas de seus países de origem:
“Em novembro passado, por exemplo, 26 obras de arte do antigo Reino de Dahomey, que estavam expostas no Museu du Quai Branly, em Paris, foram devolvidas ao Benim. Desde 2020, por iniciativa do presidente francês Emmanuel Macron, está em vigor uma lei que facilita a devolução de obras apreendidas no período colonial.”
Paris, restauro e cultura da memória, edição 57, arte!brasileiros.
A Smithsonian Institution em Washington, D.C concordou em devolver a maior parte de sua coleção de bronze de Benin para a Nigéria como parte de um importante acordo de restituição, pressionando outros museus em todo o mundo a seguir o exemplo.
arte!brasileiros dá a largada então, para incentivar este debate no Brasil. Nesta edição, escolhemos um elenco especial de pensadores, críticos de arte, historiadores, psicanalistas e jornalistas que trazem, a partir de diferentes perspectivas, elementos para esta discussão e que tem como objetivo convocar desde já para a realização do nosso VII Seminário: Cultura, Democracia e Reparação, a ser realizado na terceira semana de setembro.