Quando o escritor, educador e presidente argentino Domingos Faustino Sarmiento escreveu, em 1845, Facundo: Civilización y Barbárie, tentou retratar a formação nacional argentina por meio das relações do homem do deserto, “do pampa”, versus o homem da cidade e a força que a colonização europeia teria tido nas cidades. A existência de dois países, um civilizado – branco, ilustrado, integrado com a Europa – e um bárbaro – a Argentina do analfabetismo, dos mestiços, do isolamento, da violência: uma antítese que colocava em jogo a possibilidade de construir um corpo de nação. A obra é considerada fundadora da literatura argentina pelo pioneirismo na ruptura com os padrões do romanticismo europeu.
Em 1930, Sigmund Freud escreveu O Mal-estar na Cultura (na tradução brasileira editado também como O Mal-estar na Civilização). Nesse texto chave da sua obra, Freud (se concorde ou não) coloca por terra qualquer ilusão sobre a possibilidade dos homens virem a coexistir em paz. Ou qualquer teoria que, vinda de um conceito político, econômico ou sociológico, sugira que o homem consiga se relacionar num encontro cordial, solidário, onde supostamente teríamos acesso a um objetivo superior, deixando de nos comportar como animais.
Para ele, “o instinto agressivo não é uma consequência da propriedade, esta já regia quase sem restrições nas épocas primitivas, quando a propriedade ainda era pouca coisa, [a agressividade] já se manifesta na criança, apenas a propriedade perdeu sua forma anal; constitui o sedimento de todos os vínculos carinhosos e amorosos… Se se eliminasse todo direito pessoal a possuir bens materiais, ainda seriam substituídos pelos privilégios derivados das relações sexuais, que necessariamente devem se transformar em fonte da mais intensa inveja e da mais violenta hostilidade entre os seres humanos.”…”Evidentemente ao homem não lhe é fácil renunciar à satisfação das suas tendências agressivas; não fica nem um pouco confortável sem essa satisfação”.
“Por outra parte, um núcleo cultural mas restringido oferece a vantagem de permitir a satisfação deste instinto através da hostilidade frente a sujeitos que ficaram excluídos daquele [núcleo]. Sempre terá mais facilidade para se vincular mais amorosamente entre sí, com a condição de que sobrem outros em quem descarregar seus golpes” (pag. 3049, El Mal-estar en la cultura, Sigmund Freud, Obras Completas, Biblioteca Nueva Madrid, 1981).
Nossa pulsão pela vida e pela morte bate sempre, mais, no não igual.
Esta edição mostra, através de uma primorosa recapitulação de imagens, arquivos e obras apresentadas por artistas, fotógrafos e pensadores, como no passar do tempo não conseguimos sair do lugar: como os conflitos entre norte e sul, entre classes e poder geopolítico estão sempre a serviço de uma subjugação de uns pelos outros. O preto pelo branco, o colonizado pelo colonizador. E também como, exatamente por conta dessa dificuldade, a arte resulta num suporte permanente para trabalhar o desamparo.
PS: Boas notícias: duas Fundações Privadas, uma que faz 45 anos e outra que inaugura, expõem seus acervos ao público! Isso nos une.
PS2: Acompanhe no paginaB todas as materias da edição ao longo das próximas semanas