Escrevo este editorial num momento crítico da história recente do Brasil.
Nos dias 22 e 23 de setembro, apresentamos, em parceria com o Sesc, o Seminário Cultura, Democracia e Reparação, na unidade da Vila Mariana, em São Paulo.
Esta edição traz algumas das questões centrais colocadas pelos palestrantes (o Seminário, gravado na sua íntegra, poderá ser assistido gratuitamente nos canais digitais de arte!brasileiros e do Sesc) e pelos colaboradores. Quando for lançada a revista, ainda não saberemos o resultado das eleições presidenciais em segundo turno no país.
Quem nos conhece, sabe que entendemos a cultura e a arte como algo totalmente relacionado à natureza, não em contraponto a ela. A arte como reflexo de nosso tempo, quando apenas a contemplação não é mais suficiente. Agora, temos a obrigação de pensar a arte e a cultura imbricadas na defesa de um ideal democrático de convivência e refletir como podemos contribuir, a partir do nosso pequeno espaço, para a derrocada do obscurantismo e do atraso. É impossível declamar sobre estética e ética, imaginando que podemos nos omitir de maneira alienada.
A arte!brasileiros apoia publicamente a votação para a frente ampla democrática formada por diferentes coligações e movimentos da força popular, contra a candidatura do atual presidente Jair Bolsonaro, cujo governo nos assolou durante estes últimos quatro anos com propostas que bem conhecemos e que, com o maior cinismo, passa por baixo do pano leis que retiram investimentos da ciência, da educação, da cultura, da saúde e do meio ambiente, colocando-os a serviço da reeleição.
Afinal, que democracia estamos defendendo?
Não bastassem séculos de desigualdade social, de negação do racismo estrutural, de violência indiscriminada contra povos originários inteiros, dos anos 1980 para cá o neoliberalismo deu lugar a um novo tipo de concentração de poder, não apenas econômico, mas também de ordem cultural. Ofertas crescentes de soluções para garantir privilégios pipocaram. Bairros fechados em condomínios, licenças para usos privativos em locais com perfil comunitário, rejeição ao outro e ataques a quem pensa diferente, entre alguns exemplos, acabaram por criar um ambiente hostil ao espaço público, que acaba sendo visto não como a base para uma sociedade civilizada, mas sim a exceção.
Nestes anos estimulou-se a vocação para o individualismo: na forma de morar, de consumir, de conviver, de criar. A construção de grupos sociais cada vez mais fechados, que se retroalimentam pelo funcionamento e controle de algoritmos que determinam quem é quem, quem vale o quê.
Nessa toada, a arte também foi capturada. Obras viraram mercadorias e, numa verdadeira dança de cadeiras, vários dos profissionais que hoje vemos dirigindo instituições culturais são provenientes do mercado financeiro ou do setor empresarial, com a desculpa ou a necessidade de garantir que seus privilégios continuem existindo. Dessa forma, um circuito perverso coloca nas mãos da compra e da venda algo que deveria estar a serviço de todos. Nos últimos quatro anos, em que o Estado cortou investimentos, as instituições tiveram que optar por parar com parte das iniciativas participativas, cortar equipes curatoriais, programas educativos, conferências e performances.
Chegamos a um novo impasse, cíclico.
É necessário criar mecanismos de incentivo à pluralidade na cultura, precisamos de conselhos profissionais isentos das necessidades do mercado. Os acadêmicos precisam aprender gestão, para dirigir seus esforços de modo que as instituições consigam um equilíbrio entre os patrocínios públicos e privados. E os profissionais de mercado precisam captar verbas para que isso aconteça, com regras claras.
Cito aqui o filósofo Jacques Rancière em Òdio à Democracia, escrito em 2005:
“As leis e as instituições da democracia formal são as aparências por trás das quais e os instrumentos com os quais se exerce o poder da classe burguesa. A luta contra essas aparências tornou-se então a via para uma democracia ‘real’, uma democracia em que a liberdade e a igualdade não seriam mais representadas nas instituições da lei e do Estado, mas seriam encarnadas nas próprias formas da vida material e da experiência sensível”.
“O novo ódio à democracia pode ser resumido então em uma tese simples: só existe uma democracia boa, a que reprime a catástrofe da civilização democrática”.
Um dos nossos convidados para o Seminário, o filósofo e escritor Hal Foster, que não pôde viajar e estar conosco, desenvolveu, no seu livro O que vem depois da farsa, a ideia de que esse ato, esse ardil, quase cômico e burlesco no qual estamos imersos, poderia ser interpretado como um interlúdio, um interregno, que poderia nos dar a esperança de que outro tempo chegará. Nas palavras dele, “nada está garantido, tudo é luta.”
Temos a oportunidade, em um momento de convulsão política como o que vivemos, de encontrar brechas na ordem social pelas quais seja possível resistir e reelaborar as regras com que estamos convivendo. Temos a possibilidade de acreditar que cuidar do outro é uma atitude criativa, assim como construir um projeto curatorial coletivo ou incentivar obras coletivas como as apresentadas na documenta quinze, em Kassel. Lá, por meio do conceito de lumbung, grupos coletivos de trabalho carregaram a intenção de denunciar o fascismo, defendendo a natureza, as diferenças e a amizade. Essa é a tarefa que, mais do que nunca, nos cabe agora.