Desde sua gestação, há cerca de um ano e meio, até este início de 2020, a ali (arte livre itinerante) poucas vezes trabalhou dentro de algo que seus integrantes possam chamar de “zona de conforto”. Pelo contrário, esta espécie de escola de arte nômade, concebida e coordenada por nove artistas visuais e um cientista social, parece já ter surgido para lidar com adversidades – “na ressaca das eleições de 2018” – e tem buscado nas dificuldades do dia a dia as respostas para as muitas questões que surgem em sua atuação.
Ainda assim, seja ao lidar com as dificuldades nas tomadas de decisões coletivas – em um grupo de artistas consolidados e acostumados a trabalhar individualmente –, ao tentar articular caminhos para captar recursos financeiros ou, principalmente, ao tentar estabelecer vínculos genuínos com moradores e coletivos da periférica Cidade Tiradentes – primeira região escolhida pelo grupo para atuar –, a ali já colhe importantes frutos de seu trabalho. E consegue, também, entender melhor o território em que está pisando para planejar seus próximos passos.
A ideia de criar uma escola livre de arte com presença em zonas menos abastadas da cidade, estimulando fluxos culturais e econômicos entre centro e periferia, se consolidou após a derrota eleitoral do petista Fernando Haddad para o atual presidente Jair Bolsonaro, em novembro de 2018. “Nós já estávamos mobilizados por causa das eleições, já vislumbrávamos o desmonte de muita coisa na área cultural e, no processo de militância, já tínhamos pensado bastante sobre essa falta de integração entre as realidades sociais. Ou seja, entre nós de classe média e média alta com a galera da periferia”, conta o artista Bruno Dunley.
Ao seu lado, também integram a ali os artistas Ana Prata, André Komatsu, Ding Musa, Lucia Koch, Renata Lucas, Rodrigo Andrade, Sara Ramo e Wagner Morales, além do cientista social Gustavo Vidigal. “Começamos a nos reunir quando vimos todo esse cenário obscuro se instaurando, ainda antes das eleições, mas quando já havia começado o desmanche após o golpe de 2016”, conta Komatsu. Naquele momento, dentre os 10 integrantes da ali alguns já militavam no grupo político Jararaca, enquanto outros estavam envolvidos com a Ocupação 9 de Julho.
“E a ali surge realmente porque a gente tem esse entendimento de que a arte é uma manifestação política. E não estou falando de uma arte panfletária, mas em relação à criação, ao pensamento”, completa Komatsu. Com a ideia de formar uma escola de arte aberta e itinerante, os membros passaram a manter encontros semanais para discutir os possíveis formatos. Desde o início, definiram duas diretrizes principais para o projeto: ele estaria relacionada à formação – seja prática ou teórica –, ligada não só à arte, mas à filosofia, história do Brasil e à construção coletiva de conhecimento; e estaria focado também na formação de redes culturais, com um trabalho que buscasse o diálogo e a troca com outros grupos.
“Nesse sentido, sempre pensamos o projeto como uma ponte que pudesse viabilizar a circulação e a mobilidade. Uma ponte que pudesse ir do centro para a periferia e da periferia para o centro”, diz Dunley, que explica que os planos de itinerância da ali ainda podem abranger, ao longo dos anos, as cinco zonas da cidade. A proposta de iniciar o trabalho na Cidade Tiradentes (CT) partiu de Sara Ramo, que já havia trabalhado no local (na produção do curta-metragem “Lança”) e conhecia coletivos e jovens da região.
“Porque a ideia era criar um projeto que saísse aqui da nossa bolha, do centro comercial, e fosse para lugares mais distantes”, conta Komatsu. Neste caso, foi escolhido um lugar onde inclusive o candidato da extrema-direita saiu vencedor nas eleições, apesar do histórico de lutas progressistas na região. Como ressalta o artista, a formação da ali partiu, também, de uma tentativa de compreensão e atuação neste novo contexto político brasileiro.
Localizada no extremo Leste de São Paulo e com quase 300 mil habitantes, a CT é um distrito da capital que foi ocupado principalmente após os anos 1980 e que reúne o maior complexo de conjuntos habitacionais da América Latina. Neste universo vasto e diverso, apesar da notável ausência do Estado, estão organizados dezenas de grupos e coletivos de poesia, slam, grafite, teatro, música e outras áreas artísticas – como Pombas Urbanas, Red7, Luau Raiz Quadrado, Aliança Negra, Filhas da Dita e Instituto du Gueto –, com atuações dentro e por vezes fora do próprio território.
“Eles sabem que têm uma grande potência lá. Assim como nós sabemos que a cultura brasileira descentralizada, surgida nas periferias de modo geral, talvez seja hoje o que há de mais forte no país”, afirma Dunley. “E essa riqueza cultural que não precisa de nós, eles não dependem de a gente chegar lá e dizer que quer trocar uma ideia. Então pensamos muito sobre isso ao longo dos meses, de como poderíamos atuar. Porque, ao mesmo tempo, achamos que temos algo para oferecer. Então queremos ensinar e aprender, trocar, fazer juntos.”
Via de mão dupla
Sabendo também do longo histórico de promessas não cumpridas que acompanha a vida nas periferias urbanas – seja por parte de políticos, do poder público, de organizações privadas ou indivíduos –, os membros da ali entenderam que o maior desafio do grupo estaria no estabelecimento de um diálogo orgânico e profícuo com moradores e coletivos da CT, buscando se afastar de um modelo colonizador de atuação. “Somos brancos, de classe mais alta e moramos no centro. E são muitos os projetos que chegam nas periferias ditando regras, com uma suposta superioridade de quem tem informação e dinheiro”, afirma Komatsu. “Nossa ideia sempre foi outra.”
Após longo período de reuniões e um intenso processo de aproximação com a CT – facilitado pelo trabalho de Antonio Guerra –, os primeiros cursos da ali : leste começaram a ser oferecidos em meados de 2019 em diferentes espaços do bairro, de bares e praças até o Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes (vinculado à Prefeitura e com o qual a ali estabelece parcerias pontuais). Um curso voltado para questões urbanísticas e de uso do espaço público foi ministrado por Renata Lucas, enquanto outro de história da arte, desenho e pintura foi comandado por Dunley, Rodrigo Andrade e Ana Prata.
Foi mais ou menos neste período, a partir de agosto, que a ali passou a captar seus primeiros recursos através da venda de pequenas caixas com obras de arte – nove múltiplos em cada, um produzido por cada artista –, através de uma parceria feita com a galeria Carbono, que segue comercializando os trabalhos. Os R$ 180 mil reais arrecadados até agora possibilitaram a contratação de alguns serviços de apoio, o pagamento de ajudas de custo para artistas e parceiros, a oferta de lanches aos alunos dos cursos e a realização de um “encontrinho” e um “encontrão”, como ficaram intituladas as atividades semestrais que reúnem coletivos e moradores para debates, conversas, shows e outras apresentações.
Para 2020, além de novos cursos e dos encontros, o projeto “sábado ali” vai levar à CT, semanalmente, convidados para ministrarem aulas e participarem de conversas com formatos e temas variados – os participantes foram pensados pela ali a partir de demandas da própria comunidade. Nomes como Lenora de Barros, Noemi Jaffe, João Bandeira e Tiago Mesquita participarão destes eventos que serão realizados aos sábados no Centro de Formação.
Entres os cursos, estão programados um de poesia visual, um ateliê aberto, um sobre história e produção de videoclipes de Rap, um de história da arte e desenho, um na intersecção entre fotografia e arquitetura e um sobre formatos da arte contemporânea. Alguns deles serão ministrados não só pelos membros da ali, mas em parceria com professores convidados, de fora ou locais – como Evandro César, Lucas Lins e o grafiteiro Link (aka MUSEU), do Luau dos Loucos. A ali : leste iniciará também um programa de concessão de bolsas a ser financiado por apoiadores e futuros associados.
Se os resultados deste mais de um ano de existência da ali ainda podem soar tímidos numericamente, no que se refere à quantidade de frequentadores dos cursos e encontros (segundo os próprios artistas), eles têm se mostrado notáveis nas redes criadas para a consolidação e continuidade do projeto. Isso ficou claro, por exemplo, quando o grupo passou a ser chamado para as reuniões de coletivos da região: “Sentimos que eles estão confiando, vendo que o trabalho é consistente e que estamos lá de verdade. Foi uma vitória do projeto”, diz Dunley.
A trajetória já deixou claro, também, que o plano inicial de permanecer dois anos na CT e depois seguir para outra região deve ser repensado. “Serão pelo menos quatro anos, até para criar bases para que o projeto siga funcionando depois”. Outra constatação, reforçada pelos recentes acontecimentos no país, é de que um projeto como a ali vai seguir existindo como resistência, fora de qualquer “zona de conforto”, como conclui Komatsu: “A gente está em um cenário em que o governo vê todo movimento social e cultural como inimigo e tenta impedir qualquer manifestação de reflexão. A ideia é criar soldados, criar uma unidade básica, estabelecer a ordem, e não criar diversidade, reflexões, divergências, problemáticas. E a gente, na direção contrária, acredita que a arte é um caminho de refletir e de estar crítico ao entorno”.