“O fato é que estes poemas caberiam melhor talvez numa exposição, propostos como quadros, que num livro”, escreveu certa vez o concretista Augusto de Campos, hoje aos 85 anos. Se caberiam melhor ou não, o certo é que a obra “verbovicovisual” – termo que se refere às dimensões semânticas, sonoras e visuais da palavra – do poeta paulistano cabe não só em livros e quadros, mas também em vídeos, colagens, esculturas, músicas, instalações, holografias e projeções. Decorre desta constatação a montagem da exposição REVER, em cartaz no Sesc Pompeia, maior mostra dedicada à obra de Augusto de Campos já realizada.
“Eu acho que essas coisas já estavam potencialmente dentro da poesia concreta”, diz o autor sobre as várias plataformas utilizadas na mostra, inclusive as mais tecnológicas. “Claro que você não podia prever a que ponto chegaríamos, mas havia, virtualmente, pressupostos”, continua Augusto em entrevista a arte!brasileiros. Nessa linha, como explica o curador da mostra, Daniel Rangel, o poema Desgrafite se tornou um grafite, Espelho foi impresso em cima de um grande espelho e assim por diante. “Muitos dos suportes que a gente escolheu para expor já estavam, entre aspas, nos livros”, afirma Rangel, que concebeu a exposição em diálogo constante com o poeta. Os livros, no caso, são os quatro lançados por Augusto ao longo da vida – Viva Vaia (1979), Despoesia (1994), Não (2003) e Outro (2015) – que, junto a outras peças e a manuscritos, são as bases da exposição.
Alguns dos suportes presentes também já haviam sido utilizados pelo autor ao longo se sua carreira de 65 anos, iniciada pouco antes de fundar ao lado de Haroldo de Campos e Décio Pignatari o grupo Noigandres, em 1952. A célebre poesia Viva Vaia, por exemplo, escrita em 1972 em homenagem a Caetano Veloso e exposta como uma grande escultura de aço em REVER, já havia sido apresentada neste formato outras vezes, mesmo que em reproduções menores. Vídeos, hologramas e animações, por exemplo, também não são novidades para o poeta, que sempre buscou acompanhar as tecnologias de cada época. “Até os vídeos em 3D, realizados pela primeira vez agora, já pediam o 3D antes mesmo dele existir”, diz Rangel. “Isso é uma característica do trabalho do Augusto, que sempre foi um vanguardista”. Se não fosse pela questão geracional, talvez o próprio autor estivesse produzindo com tecnologia de ponta em casa: “Comecei a trabalhar com meu próprio computador doméstico só em 1992. Então eu já tinha 60 anos, quando o ideal era ter 20”, brinca.
Diante da diversidade de plataformas e linguagens utilizadas, Rangel afirma que a mostra tem como objetivo, além de apresentar uma grande retrospectiva (também prospectiva, segundo ele) do trabalho do autor, corrigir uma falha histórica que permanece ainda hoje. “Em qualquer biografia sobre Augusto, ele é considerado poeta, tradutor, crítico e ensaísta, mas nunca artista. E um dos objetivos desta exposição é corrigir um pouco esse erro, uma vez que ele é também um grande artista”. Perguntado sobre o assunto, Augusto relembra a célebre Exposição Nacional de Arte Concreta, em 1956, que lançou as bases do concretismo no País, reunindo poetas e artistas plásticos. “Então não esse, da arte, não me é um ambiente estranho, apesar de não ser tão frequente em uma exposição a presença de poetas”, diz ele. Mas Augusto também é um artista, não? “Eu suponho que sim”, responde o próprio, rindo.
A questão da falta de reconhecimento de Augusto enquanto artista é, na verdade, parte de uma possível falta maior, de reconhecimento da própria poesia concreta. Em entrevista, certa vez, o autor afirmou que os poetas concretos se defrontaram com um muro de negação diante de minoritários aplausos. “Isso mudou muito, hoje a poesia concreta está até em livros didáticos. Na crítica ainda há quem seja muito contra, mas isso é natural, até importante. Porque significa que você incomoda, e a arte tem que provocar, né?”. O curador é ainda mais contundente em sua afirmação: “Eu acho que a poesia concreta ainda está numa fronteira onde ela nem é tão reconhecida no campo da literatura, nem no campo das artes visuais. Então ela vive meio numa fronteira, numa espécie de limbo crítico”. Mas assim como o poeta, Rangel reconhece uma melhora no panorama. “Agora começa a cair mais a ficha das pessoas em relação ao Augusto, mas ele passou muito tempo numa espécie de ostracismo. Tanto é que uma exposição deste porte só acontece agora. Precisou chegar aos 85 anos pra ganhar uma exposição que ele pode realmente chamar de dele”.
Enquanto celebra os 65 anos de carreira e a realização de sua maior exposição, Augusto lamenta profundamente a situação do país e o possível afastamento da presidenta Dilma Rousseff. Autor do poema-colagem Psiu (1966) em plena ditadura militar e de outras obras relacionadas à vida política brasileira ao longo das décadas, Augusto não apresenta em REVER nenhum trabalho ligado diretamente ao conturbado momento atual, até mesmo porque a mostra foi planejada muito antes de ter inicio o processo de impeachment. “Mas, quem sabe, depois do circo grotesco que nós fomos obrigados a assistir pela televisão, proporcionado pela Câmara dos Deputados, a poesia possa trazer um pouco de sensibilidade, um pouco de consciência. Quem sabe pode dar um pouco de luz e de esperança para esse momento tão conturbado e triste”.
Relembrando que é também advogado e foi procurador do Estado durante 40 anos, Augusto argumenta que a destituição da presidenta não tem base jurídica sólida. Mas com a veia poética que fala mais alto, ele conclui trabalhando as palavras: “Fica até um paradoxo, porque o que se está vendo aqui, na exposição, é obra em progresso, e o que o Brasil está passando é obra em regresso”.
*Em 2019 a arte!brasileiros entrevistou novamente Augusto de Campos. Leia aqui.