*Por Rafael Cardoso
No exato momento em que a Bienal de Berlim vem dar sua contribuição ao esforço para tornar a cena artística mais inclusiva e atual, dois importantes espaços expositivos da capital alemã voltam a atenção para a obra de um historiador da arte, falecido há mais de noventa anos, especialista em Renascimento Italiano. As exposições Aby Warburg, atlas de imagens Mnemosine: o original e Aby Warburg, entre cosmos e páthos: obras berlinenses do atlas de imagens Mnemosine, ocupam respectivamente a cultuada Haus der Kulturen der Welt (HKW) e o museu Gemäldegalerie. O que torna a obra de Warburg tão relevante para o presente que mereça esse duplo destaque e, mesmo em tempos de pandemia, atraia um público cada vez maior?
Aby Warburg (1866-1929) não é nenhum desconhecido na história da arte, mas antes um dos grandes nomes da geração que teorizou uma “ciência das imagens” (Bildwissenschaft, em alemão), no início do século 20. Com o ressurgimento desse tipo de abordagem, no rastro de seguidores como Georges Didi-Huberman e Horst Bredekamp, sua reputação intelectual se avultou ao ponto de ele virar modismo entre estudiosos da arte. O problema é que Warburg é daqueles autores mais referidos do que lidos. Muitos dos que invocam seu nome o fazem apenas para justificar aproximações entre obras de contextos distintos. Dizer-se warburguiano virou, no meio curatorial, uma licença para misturar alhos com bagulhos. O chamado pseudomorfismo (isso parece com aquilo, portanto deve existir uma relação) é efeito colateral comum de quem toma pílulas de Warburg fora da dosagem indicada.
Boa parte da desorientação em torno de Warburg advém do fato de que sua última obra, possivelmente a maior delas, permaneceu inacabada. Ao falecer em 1929, o autor trabalhava sobre um atlas de imagens intitulado Mnemosine – em homenagem à deusa grega da memória, mãe das nove musas. Seguindo uma lógica própria, Warburg montava imagens sobre painéis, organizando-as por grupos temáticos e palavras-chave, apontando persistências e coincidências, buscando ecos e repetições entre obras não necessariamente oriundas de contextos culturais vizinhos. Isso permitia comparações, às vezes geniais, às vezes tortuosas, entre antiguidade e modernidade; Oriente e Ocidente; cartas celestes e cartas de tarô; desenhos renascentistas e cartazes publicitários. Fundamentado em sua vasta erudição e conhecimento histórico, ele foi desenvolvendo um método original de pensar não somente o significado das imagens, mas também o modo como elas significam.
Quando da morte de Warburg, o conjunto do atlas consistia de quase mil pranchas distribuídas por 63 painéis. A ascensão do nazismo colocou em dúvida o destino de sua biblioteca em Hamburgo, e seus discípulos organizaram a transferência dos livros e materiais iconográficos para Londres, onde serviram de base para a criação do Warburg Institute em 1934. Desde então, houve várias tentativas de publicar versões do atlas, na íntegra ou em parte, o que só fez aumentar as disputas em torno do sentido da obra. A exposição atual na HKW tem por propósito reconstituir a versão “original”, garimpada em extensa pesquisa nos arquivos do Warburg Institute, onde as pranchas se encontravam dispersas entre milhares de outras. Em paralelo, a exposição na Gemäldegalerie agrupa meia centena de obras estudadas por Warburg e incluídas nos painéis de Mnemosine por meio de reproduções. Juntas, as duas mostras oferecem uma oportunidade ímpar de vislumbrar os processos por trás do pensamento dele.
Qual a relevância desse legado intelectual para os dias de hoje? Não resta dúvida que Warburg foi um pioneiro em conceber as imagens de modo disseminado e universal, sem divisões hierárquicas entre culturas e mídias. Para ele, uma fotografia interessava tanto quanto uma pintura, povos não europeus tanto quanto a Europa. Foi precursor não somente em seu olhar para a linguagem das formas – a chamada iconologia – como também por seu interesse em estudos etnográficos como instrumento para compreender a arte. Era um pensador que entendia a cultura humana como um todo e buscava seguir o devir das imagens como pista para desvendar o que temos em comum. Antecipou, em vários sentidos, as ideias de cultura visual e arte global que hoje desafiam não somente historiadores como também artistas. Podemos aprender muito com sua obra – sobretudo que o melhor pensamento visual requer aprofundamento no repertório. Mnemosine, afinal, é memória. Do seu ventre, brotaram as artes e a história.