O fascínio provocado pela exposição de Arthur Bispo do Rosário tem origem múltipla: a densidade poética e plástica daquilo que ele produziu; a intensidade de sua pulsão criativa e de recriação do mundo – buscando de forma incansável repertoriar, organizar e reelaborar tudo à sua volta; mas também a força propulsora de sua experiência, que em alguns momentos parece sintetizar e dialogar com alguns dos veios principais da arte moderna e contemporânea brasileira, como fica evidente nos diálogos propostos pela mostra entre os trabalhos criados pelo Bispo e uma seleção de cerca de 200 obras de 50 artistas convidados, que iluminam em contexto amplo um enorme campo de possibilidades para estabelecer relações, de convergência, sintonia ou influência.
Sem ter um caráter didático ou cronológico, a exposição remete sem cessar à experiência trágica e profunda do autor, encerrado por décadas em manicômios e enfatiza o aspecto único e coeso de suas obras. Não à toa Ricardo Resende, diretor do Museu Bispo do Rosário (mBRAC) e curador da mostra juntamente com Diana Kolker, enfatiza que se trata de uma obra de um trabalho só, mesmo que composto de mil peças (das quais aproximadamente 400 foram trazidas a São Paulo). São painéis, bordados, vestes, objetos, assemblages que ele construiu metódica e compulsivamente ao longo de sua vida. Evidentemente, cada peça ou conjunto tem suas características particulares, lança mão de materiais e procedimentos específicos, mas elas reverberam entre si com uma intensidade que a expografia só busca acentuar, trazendo para o espaço do Itaú Cultural elementos que fazem referência à arquitetura da Colônia Juliano Moreira, instituição onde ele viveu como interno, a exemplo do uso de estruturas cubiculares (celas) e de paredes vazadas como os cobogós presentes no edifício.
Internado pela primeira vez em 1938, data em que dizia ter recebido a revelação de que seria o filho de Deus e a missão divina de recriar todos os objetos presentes no mundo, Bispo constrói uma verdadeira cosmogonia. “Tudo que ele organiza e confecciona são a representação do objeto, são sistemas representacionais do mundo”, explica Diana. Como resume a curadora-pedagoga do mBRAC, a narrativa que ele constrói não é racional, moderna. Ele estabelece nexos, sugere conexões muitas vezes improváveis entre coisas como religiosidade, pulsão inconsciente e criação artística. Mais do que apresentar respostas, a exposição devolve ao espectador uma série de perguntas essenciais: Como definir o que é arte? O fazer manual e o esforço de organização não são afinal um exercício de cura? Não seria a arte uma forma de conexão com instâncias muito mais profundas (místicas ou inconscientes), que vão muito além de um circuito autorreferente?
Materiais precários
É marcante a presença entre suas construções de listas, coleções e catálogos de objetos similares, como sandálias, nomes de mulheres ou mapas. Mas além dos traços estilísticos recorrentes, pulsam nesses objetos elementos cotidianos da vida desse homem negro, pobre, encarcerado ao longo de praticamente toda a sua vida adulta. A precariedade dos materiais – que remetem ao caráter pobre, um tanto tosco dos mercados de secos e molhados ou dos camelôs – fala sobre as condições difíceis enfrentadas nas instituições manicomiais. É profundamente significativo que muitos dos elementos que ele incorpora tenham sido obtidos por ele num processo permanente de acúmulo e doação.
A própria linha, já desgastada, que ele usa para bordar – com uma habilidade provavelmente advinda da tradição do bordado na sergipana Japaratuba, sua cidade natal, ou do desenvolvimento da técnica nos tempos em que serviu à Marinha – é obtida de velhos uniformes azulados e roupas de cama, que desfia sem parar. Tal fragilidade torna-se uma dificuldade a mais na preservação dessa obra, cuja sobrevivência durante sua vida e logo após a morte deve-se à intervenção de um conjunto de pessoas sensíveis à força dessa produção. Afinal, sua obra ainda não estava inscrita no circuito da arte. Nos últimos anos seu acervo passou por uma série de procedimentos de conservação, limpeza e catalogação, porém é inevitável notar os efeitos do tempo sobre as peças, sobretudo no embotamento da cor, sensível em algumas peças icônicas como o Manto da Apresentação e Grande Veleiro, que tiveram participações de destaque em mostras como as bienais de São Paulo (2000 e 2012) e Veneza (1995 e 2013).
Esse caráter efêmero de sua produção, um desafio museológico que torna ainda mais imperdíveis exposições como essa, é uma das diversas chaves de entrada para a relação entre sua obra e o amplo recorte da produção contemporânea representada na mostra. Parece predominar na seleção um tipo de trabalho em sintonia formal ou poética com aquele desenvolvido por ele, uma produção artística que muitas vezes deixa de lado as noções de obra perene em busca de uma interação maior entre arte e vida, que valoriza uma ação prática e poética no mundo, sem preocupar-se com a fragilidade, pureza ou nobreza dos materiais empregados, como por exemplo nos carros de sucata de Arlindo Oliveira, do Atelier Gaia, projeto coletivo de arteterapia mantido pelo mBRAC e criado em 1992 frequentado por artistas usuários dos serviços de saúde mental. Outro recorte importante da seleção é aquele que contempla os artistas que transitaram por essa fronteira extensa entre arte e psiquê, retratando e resgatando o universo da loucura (Regina Silveira e Monica Nador), incorporando-se a projetos pioneiros (Maria Leontina, Almir Mavignier e Abraham Palatnik) ou usando a criação como forma de terapia (pacientes da Dra. Nise da Silveira no Centro Psiquiátrico Pedro 2º, que hoje compõem o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente).
Para além dessas referências históricas ou formais, ecoa por toda a exposição uma espécie de sintonia conceitual, afetiva, que une os gestos de Bispo há produção de artistas de diferentes gerações, autores que se reapropriam ou simplesmente reverberam de diferentes maneiras sua forma potente de agir no mundo. Tanto as obras quanto os testemunhos coletados pelos curadores dão indícios claros desse impacto. Rosana Palazyan – presente com delicados bordados, usando fios de cabelo ou páginas de caderno pautado – diz ter se sentido autorizada a expor a costura e o bordado quando teve o primeiro contato com sua obra, na exposição realizada em 1989, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, logo após a morte dele. Jaime Lauriano, autor de um dos poucos trabalhos comissionados da exposição, fala em Bispo habitando seu próprio corpo, de um encontro em dimensão transistórica. Carmela Gross – presente com duas potentes obras, A Negra e Cabeças – lembra-se de ter ficado petrificada em seu primeiro encontro com seu trabalho e Pedro Moraleida explicita no próprio trabalho essa conexão, ao inserir um retrato seu em uma de suas obras e escrever em outra: “Bispo é meu pai”.