Estamos fartos de saber que os países desenvolvidos cultuam sua história, e que vários desses movimentos foram às custas da nossa própria existência como países subdesenvolvidos, seja porque levaram nossas obras, nosso ouro ou nossas terras.
Não obstante, é impossível não ficar impressionado com o respeito à memória e o cuidado que exercem pelo que foi construído por seus antepassados. O Estado forte serve entre outras coisas para, em parcerias público-privadas, remodelar, reformar e manter o patrimônio arquitetônico e cultural desses países.
É até por isso que tem sido fundamental reclamar e criar movimentos pela restituição de várias das obras africanas e latino-americanas em posse de alemães, franceses e outros europeus. Em novembro passado, por exemplo, 26 obras de arte do antigo Reino de Dahomey, que estavam expostas no Museu du Quai Branly, em Paris, foram devolvidas ao Benim. Desde 2020, por iniciativa do presidente francês Emmanuel Macron, está em vigor uma lei que facilita a devolução de obras apreendidas no período colonial.
Já a reabertura da Bourse de Commerce (Bolsa de Comércio) de Paris, na rue de Viarmes, com a exposição da coleção François Pinault, é sem dúvida um exemplo do cuidado com a memória. O edifício central foi construído como um grande celeiro a céu aberto no século 18 e, a posteriori, fechado com uma grande cúpula de ferro.
O interior da rotunda cujos afrescos representam a história do comércio entre os cinco continentes foram pintados na época por Alexis-Joseph Mazerolle, Évariste Vital Luminais, Désiré François Laugée, George Clairin e Hippolyte Lucas e restaurados em 1998.
Agora, após três anos de reformas e restaurações feitas pelo arquiteto japonês Tadao Ando, o edifício reabre suas portas e ganha uma linguagem contemporânea sem macular um único espaço da sua estrutura original. Hoje, o átrio comporta sete galerias ao longo de três andares, um grande salão e um restaurante no último andar.
A exposição Overture marca, além da transformação do prédio, a busca do colecionador Pinault por valorizar e defender valores sobre a liberdade, ligados à diversidade, a posições emergentes. Como em uma ópera, a exposição traz vários “momentos” e “atmosferas”, assim como diferentes práticas artísticas como esculturas, vídeos, instalações, performances, fotografias e pintura, muita pintura.
Estão lá não só artistas europeus de renome como Maurizio Cattelan, Marlene Dumas, Pierre Huyghe, Philippe Parreno, Rudolf Stingel e Tatiana Trouvé, entre outros, mas também representantes da nova cena de artistas negros como o norte-americano Kerry James Marshall e os brasileiros Antonio Obá e Paulo Nazareth. No centro da rotunda encontra-se a instalação de Urs Fisher, Untitled (Giambologna), de 2011, que é uma réplica exata da The abduction of the Sabine Women, uma estátua maneirista de 1579-1582, produzida por Giambologna. Desta vez produzida em cera e aço, e com mechas acesas, ela se derrete em diferentes lugares e vai perdendo sua forma.
Outra experiência digna de ser acompanhada foi a abertura do segundo subsolo, no Palais de Tokyo, edifício consagrado da arte contemporânea em Paris, no 16≠ arrondissement do lado da Torre Eiffel, e que deu lugar a performance Natures Mortes (Natureza Morta), da alemã Anne Imhof. Um espaço completamente aberto sem divisórias que permitiu acolher uma obra polifônica que funde espaço, música, instalações e a participação dos corpos dos cerca de trinta artistas convidados.
Fortíssima, com movimentos e encenações que relembraram o tempo todo o momento que vivemos: de solidão, pavor, sofrimento e em alguns momentos de alienação, a performance de cerca de quatro horas congregou centenas de pessoas em segurança, máscaras e certificado de vacina para entrar, mas que também se movimentavam um pouco absortos pelo espaço, como esperando ou buscando algo que faltou a todos e a cada um nesse tempo onde a incerteza foi a nota alta da nossas vidas.