A diversidade de temas, poéticas e abordagens da 21ª edição do Videobrasil é um de seus pontos altos. Não existem redundâncias ou sobreposições entre as mais de 60 obras selecionadas para a mostra, que pela primeira vez na história conta com um fio condutor definido antes mesmo da convocatória. “Comunidades Imaginadas”, mote inspirado na obra de Benedict Anderson, torna-se um guia potente, mas não impositivo, que permitiu congregar um leque amplo de pesquisas cuja principal característica comum talvez seja a maneira delicada com que tratam de questões muitas vezes dramáticas.
Destruição, ameaça de extermínio, visão distorcida de mundo em função de preconceitos raciais, econômicos ou sociais são aspectos largamente tratados pelos 50 artistas selecionados pela comissão julgadora e pelos 5 convidados pela curadoria. E, no entanto, predomina na mostra uma certa sutileza, uma aposta na potência transformadora da arte, que não precisa gritar para ser escutada. Alguns exemplos demonstram claramente essa defesa da utopia diante da tragédia contemporânea. Trabalho com grande destaque na exposição, a série de fotos de paisagens urbanas feitas por Hrair Sarkissian, sírio radicado na Inglaterra, lida de forma sutil e surpreendente com as repressões totalitárias ao mostrar lugares onde costumam ser feitas as execuções públicas em diversos países onde a pena de morte é política de Estado.
A peruana Claudia Martínez Garay explora com um misto de sutileza e pontaria aguda o aniquilamento da cultura ancestral indígena e os efeitos da colonização sobre o povo indígena. Ela comparece na mostra com dois trabalhos: a instalação intitulada Somos aún!, feita a partir da somatória de uma série de esculturas de caráter antropomórfico, que mesclam vestígios de culturas ancestrais a uma persistente defesa do imaginário popular, e um vídeo tocante, Eu Sobreviverei a Vocês, no qual são vistas imagens em grande proximidade as formas de um antigo vaso do século 7 da civilização moche, célebre por seu trabalho em cerâmica, guardado no Museu Etnológico de Berlim. Enquanto se perde nas formas sinuosas e misteriosas desse objeto arqueológico, o espectador escuta uma narrativa estranha, um tanto surreal, feita em primeira pessoa pelo vaso, narrando desde sua confecção até seu encerramento num museu distante.
A cultura milenar de seu povo também é o tema do trabalho de Dana Awartani. Numa relação especular entre vídeo e instalação, a artista árabe tece um crítico comentário sobre o abandono da milenar arquitetura Hejazi, típica de sua região até o início de um processo de modernização avassalador, iniciado nos anos 1950. Dana recobre o chão de sua instalação com um tapete de belos ladrilhos com padronagem geométrica, tipicamente islâmica, feito pacientemente com areias coloridas. A efemeridade da composição fica ainda mais evidente diante do vídeo, que mostra a artista varrendo a mesma formação, numa das poucas casas com esse tipo de arquitetura ainda existentes na Arábia Saudita.
Evidentemente a presença do vídeo é marcante na mostra, mas não é de forma nenhuma hegemônica. Muitos trabalhos mesclam a linguagem com outras formas de expressão como a pintura, a fotografia e o desenho ou simplesmente incorporam procedimentos típicos do vídeo em obras que prescindem da imagem em movimento, como é possível constatar em obras como as do brasileiro André Griffo, do malinês Tiécoura N’Daou e do tunisiano Nidal Chamekh, que trafegam livremente pelos mais diferentes meios de expressão para desenvolver um trabalho de alto teor de resistência política. Em outras palavras, o evento nos coloca diante de uma série de trabalhos que falam, nas palavras da diretora artística Solange Farkas, “línguas diferentes para situações muito similares”.
No quesito denúncia, o ponto alto da mostra são os trabalhos relativos à população indígena, tirando da invisibilidade o drama dessas populações cada vez mais ameaçadas pela violência e que há muito são relegadas a uma posição de invisibilidade. Grupos coletivos como o Alto Amazonas Audiovisual, que congrega antropólogos e cineastas indígenas, costuram e colocam em diálogo imagens captadas na região. Há também registros históricos como as entrevistas feitas pelo cineasta Andrea Tonacci com lideranças indígenas no final dos anos 1970 e que só agora, em 2014, foram recuperadas e restauradas. Mas ainda estão presentes na mostra, e em coro, contundentes vozes de alerta sobre a situação de comunidades e grupos em busca de sobrevivência e espaços afetivos de convívio e luta. Esforço que está sintetizado na incisiva ação comandada pela mexicana Teresa Margolles, um dos cinco artistas especialmente convidados para participar da Bienal, que denuncia a brutal violência contra os transexuais. A obra, intitulada Priscila Presente homenageia a travesti assassinada a facadas há um ano atrás no centro de São Paulo e se desdobra em três diferentes elementos: ação performática, bordado e vídeo. Ou nas pinturas de No Martins, que associam potentes retratos de figuras negras à frase “Já Basta!”.
21ª edição da bienal Sesc_Videobrasil
Sesc 24 de Maio – R. 24 de Maio, 109 – República, São Paulo
Até 2 de fevereiro
Entrada gratuita
A internacionalização da Sesc_VideobrasilCom 21 edições e 36 anos de existência, o Sesc_Videobrasil se afirma como um dos mais potentes e longevos eventos culturais do país. Na atual edição, que pode ser vista até fevereiro de 2020, no Sesc 24 de Maio, a mostra realizou algumas importantes mudanças em sua estrutura. Dentre elas, estão a incorporação de um tema não só para a seleção dos trabalhos, mas já anunciado antes que os artistas inscrevessem seus projetos (Comunidades Imaginadas foi o fio condutor adotado para a atual edição); a ampliação da equipe curatorial; e — talvez a mais impactante das alterações — a transformação do evento em uma Bienal. O termo Bienal, incorporado ao título do evento que passa a ser chamado de Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, não é apenas uma informação de periodicidade ou um golpe de marca. Assumir-se como um evento do gênero insere a agora bienal numa ampla agenda internacional de arte contemporânea. É uma maneira de reafirmar-se como parte de um circuito amplo e ativo de ação cultural. O Brasil já possui duas outras importantes Bienais, a de São Paulo e a do Mercosul, mas o campo do Videobrasil é bem delimitado: atua de maneira clara na contramão dos núcleos hegemônicos, congregando basicamente artistas e pensadores da África, América, Oriente Médio e Caribe. “É esse o lugar que temos que pesquisar, temos que investigar”, diz Solange Farkas, idealizadora e atual diretora artística do projeto. Ela faz questão de ressaltar a importância de manter o evento sempre pronto a adaptações. O Sesc_Videobrasil já se assemelhou a uma mostra de cinema, já assumiu a identidade de um grande festival e agora conclui uma etapa importante desse lento processo de sair da caixa preta da sala de cinema e ir para o “cubo branco” do espaço expositivo. “A primeira década foi para entender a produção de vídeo no Brasil”, explica Solange. Nos anos 1990, nota-se um certo desapontamento, uma frustração da esperança de que o vídeo ocuparia um espaço mais significativo no cenário cultural. “Passamos do romantismo ao pragmatismo e, diante da percepção de que não íamos ocupar a TV, as pessoas passaram a investigar e experimentar mais intensamente as especificidades da linguagem”. Na esteira desse processo, houve um importante processo de internacionalização, primeiro reunindo e mostrando no Brasil o melhor da cena internacional e as bases históricas da videoarte e, na sequência, abrindo espaço para uma jovem e intensa produção, de difícil acesso, oriunda do sul geopolítico. “Havia um desconhecimento, uma ignorância muito grande sobre a história do vídeo aqui”, conta. O resultado desse mapeamento pode ser mensurado no arquivo de quase três mil trabalhos reunidos no acervo da Associação Videobrasil, disponível para consulta. “É um amplo material que permite entender esse lugar da invisibilidade crítica”, acrescenta. Segundo ela, a estratégia de se assumir como uma bienal especializada vem se desenhando há três edições, quando trouxe o trabalho de Olafur Eliasson para o Brasil. Dentre os desafios que se colocam para o novo modelo do evento, Solange cita a incrementação dos diálogos internacionais e locais, agregando grupos e questões tradicionalmente relegadas à margem. “Não adianta ficar ensimesmado”, conclui. |