A inclusão de narrativas fora do eixo central Estados Unidos e Europa tem sido constante política em importantes instituições de arte como o Museu de Arte Moderna, em Nova York, a Tate Modern, em Londres, o Centro Pompidou, na em Paris, e o Reina Sofia, em Madri.
Há quase duas décadas pelo menos, esses museus vêm incorporando obras latino-americanas, um dos locais não-hegemônicos que mais vem ganhando espaço, e deram visibilidade a produções importantes de artistas como Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape e Cildo Meireles, para citar apenas alguns brasileiros, recuperando assim uma lacuna em seus acervos e programas.
A Alemanha demorou a ter tal iniciativa, mas desde 2014 a Fundação Nacional de Cultura (Kulturstiftung des Bundes) criou o programa Global Museum, que vem revisando as perspectivas das coleções de seus museus nacionais.
“História de dois mundos – arte experimental latino-americana em diálogo com a coleção MMK, 1949 – 1989”, inaugurada em julho passado no Museu de Arte Moderna de Buenos Aires (Mamba), representa um dos desdobramentos do projeto Global Museum.
“A mostra foi uma sugestão de Hortência Völckers, da Fundação Nacional de Cultura, para ser realizada tanto no Museu de Arte Moderna de Frankfurt (MMK), na Alemanha, quanto aqui na Argentina”, disse à ARTE!Brasileiros a diretora do Mamba e curadora da exposição Victoria Noorthoorn, que dividiu a tarefa com Javier Villa e Klaus Görner, pelo museu alemão.
Segundo Völckers, que é argentina radicada na Alemanha, além do MMK dois outros museus alemães realizam mostras com estratégias semelhantes, entre eles a Hamburger Bahnhoff, em Berlim.
Inaugurada em Frankfurt, em novembro do ano passado, “História de dois mundos” segue até 14 de outubro na capital argentina e reúne cerca de 500 obras de cem artistas, em sua maioria latino-americanos, não só a partir do acervos das duas exposições que organizam a mostra mas também de várias instituições, inclusive brasileiras, como a Pinacoteca do Estado.
Ampliação
A mostra binacional ainda representa um marco na história do museu: a ocupação completa do edifício sede, no bairro de San Telmo, onde o Mamba funciona desde 1986, mas que utilizava cerca de metade de sua capacidade. Agora, a instituição tem 4 mil metros quadrados de área expositiva, toda ela utilizada para “História de dois mundos”.
Uma das primeiras imagens da mostra é uma foto de Albert Georg Riethausen, onde se vê um grupo de artistas na corda-bamba, em 1949, em meio a uma cidade alemã completamente destruída pela Segunda Guerra Mundial. Na sequencia, são apresentados diversos trabalhos que representam a antítese desse espaço de ruínas, a América Latina como um local de utopias, desde os fotógrafos Thomaz Farkas e Marcel Gautherot , com imagens da construção e inauguração de Brasília, em 1960 e 1961, a projetos do arquiteto argentino Amancio Williams, como um aeroporto a ser construído sobre o Rio da Prata, de 1945.
Essa inversão do que se tornou o estereótipo atual da nova ordem mundial – a Alemanha como principal potencia europeia e a América Latina como terra arrasada do sistema neoliberal – aponta de fato como é possível através da arte se repensar estruturas aparentemente definitivas.
De fato, a mostra reúne artistas com obras potentes que desafiaram as ditaduras que se espalharam pelo sul do continente americano como nas obras de Anna Maria Maiolino e Artur Barrio. “Entrevidas”, 1981, de Maiolino, ocupou uma das salas da mostra – com arquitetura de Daniela Thomas e Felipe Tassara – com dezenas de ovos, apontando a fragilidade e esperança, assim como “Situação T/T, 1”, 197o/2017, de Artur Barrio, a obra histórica, cuja documentação apresenta imagens dos pedaços de carne envoltos em panos despejados em um parque de Belo Horizonte, que lembravam os corpos torturados pela ditadura militar no Brasil. Ambos artistas são bons exemplos dessa nova política das grandes instituições de arte, já que os dois tem sido incluídos em exposições e mostras de acervo.
Esse é o caso da colombian Beatriz González, que participou da documenta 14, em Kassel e Atenas, no ano passado, e tem ganho grande destaque nos últimos meses. Na mostra, ela participa com uma sala que dá conta da poética de sua obra, que mescla objetos do cotidiano, como moveis e cortinas e os sobrepõe com padrões coloridos, bem ao estilo pop, só que com situações críticas a elite de seu país.
Coproduzida afinal por um museu portenho, “História de dois mundos” apresenta em seus 16 módulos uma ampla e merecida seleção de artistas argentinos, caso de Leon Ferrari, contemplado com uma sala de seus trabalhos críticos à igreja católica, e ainda Oscar Bony, Victor Grippo, Liliana Porter, Edgardo Antonio Vigo, Liliana Maresca e Marta Minujin, entre outros.
E esses artistas convivem, ao final, no mesmo nível de consagrados como Francis Bacon, Joseph Beuys, Andy Warhol, Marcel Broodthaers, Marcel Duchamp, Gerhard Richter, Cy Twombly e Charlotte Posenenske para citar alguns dos expostos do acervo museu alemão.
O melhor, contudo, é perceber que a inserção dos latinos vem de um esforço de inclusão de um museu alemão, e que a própria curadoria é feita em uma colaboração que envolve os dois países. Empoderar, afinal, não é apenas ampliar a representação, mas dar voz a quem até agora não teve espaço. E no caso de “Uma história de dois mundos” isso ainda se confirma no impressionante catálogo de quase 500 páginas, com ensaios que ampliam os debates da mostra.
O jornalista Fabio Cypriano viajou a convite do Museu de Arte Moderna de Buenos Aires