Infinito Vão: 90 anos de Arquitetura Brasileira, no Sesc 24 de Maio, subverte qualquer conceito de exposição do gênero. Cênica, sem ser teatral, tem narrativa centrada na hibridação de várias poéticas, como música, artes plásticas, literatura e vídeo, e deixa o visitante pluralizar esse encontro durante toda sua travessia.
Com curadoria de Guilherme Wisnik e Fernando Serapião, a mostra já foi exposta em 2019 na Casa da Arquitetura de Portugal e reúne projetos de 96 arquitetos. O arranjo temporal abarca desde os anos 1920, marcados pela Semana de Arte Moderna de 1922, até os dias atuais, com projetos de nomes já esperados como Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha, Lucio Costa e Lina Bo Bardi, que se somam a outros menos conhecidos para juntos contarem uma história de nove décadas.
Visitar a mostra não é um convite, mas uma recomendação de Guilherme Wisnik, “porque ela dialoga com a nossa realidade”. Uma dose emotiva embala Infinito Vão pelo momento de obscurantismo sociopolítico e cultural que vivemos. A exposição prova que a arquitetura pode representar muito mais do que ela mesma. Na abertura da mostra, Paulo Mendes da Rocha diz que “a arquitetura é uma maneira de dizer quem somos nós e quem seremos nós”.
O título, Infinito Vão, vem dos versos de Drão (1982), música de Gilberto Gil: “O verdadeiro amor é vão, estende-se infinito, imenso monolito, nossa arquitetura”. Na linguagem dos arquitetos curadores, “vão é algo que se vence, um desafio a superar, é reduzir a quantidade de apoios, expandir as lajes horizontalmente, lançar-se no vazio aéreo abrindo uma imensa luz ao rés-do-chão. Na língua portuguesa é algo que não deu certo, foi feito em vão”.
Logo na entrada da exposição, sons de vídeos curtos com imagens de diferentes décadas dão o tom. Além da seleção de projetos escolhidos, músicas de Caetano, Gil, Arnaldo Antunes e Racionais MC’s se misturam com obras de artistas plásticos como Claudio Tozzi, Nelson Leirner, Rubens Gerchman, Paulo Bruscky e com os textos breves de Leminski, Rem Koolhaas, Álvaro Siza, Mário Pedrosa… Todos juntos estimulam a percepção e aumentam o prazer da visita.
A chave de Infinito Vão são as músicas que abrem e contextualizam cada um dos seis núcleos em que a mostra está dividida, além dos projetos arquitetônicos que representam cada um deles. Do Guarani ao Guaraná (1924-1943) parte da marchinha carnavalesca de Lamartine Babo, História do Brasil, com a pergunta que anima gerações: “Quem foi que inventou o Brasil?…”. Neste período, o país, como observa Wisnik, “salta do romantismo indígena e da escravatura para a cultura industrial e urbana”. Foi o momento da Semana de Arte Moderna e do Manifesto Antropófago (1928), de Oswald de Andrade, preocupados com a construção da estética que incluía as raízes do Brasil. Destacam-se na mostra a primeira casa modernista do Brasil, de Gregori Warchavchik em São Paulo, marco inicial da exposição, passando pelo Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, até chegar ao conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte.
A Base é uma Só (1943-1957) nasce da música Samba de uma Nota Só, de João Gilberto, que marca a criação da bossa nova, movimento carioca que colocou a música brasileira num patamar internacional. O período escolhido pelos curadores vai da Pampulha ao concurso para o plano piloto de Brasília e às novas cidades projetadas no Amapá e no Mato Grosso, que abrem o caminho para Brasília.
No núcleo Contra os Chapadões Meu Nariz (1957-1969), os arquitetos se inspiram no verso da Tropicália, música de Caetano Veloso feita em um momento de desbunde da música brasileira influenciada pela contracultura. Rubens Gerchman cria a A Bela Lindoneia (versão porta-retrato), de 1967. Na arquitetura surgem os primeiros esboços de Niemeyer antes do lançamento do concurso nacional para o plano piloto da Brasília. Em texto de 1970, e presente na mostra, Clarice Lispector diz que “Brasília é construída na linha do horizonte. Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado”.
A mostra se ilumina no núcleo Eu Vi um Brasil na TV (1969-1985), com a trilha de Bye Bye Brasil, de Chico Buarque e Roberto Menescal. Marca o período da cassação dos arquitetos Artigas e Paulo Mendes da Rocha e de outros intelectuais que são exilados. As favelas se multiplicam em São Paulo e numa outra ponta social Lina Bo Bardi transforma uma fábrica de tambores no atual Sesc Pompeia e Eurico Prado Lopes e Luiz Telles projetam o Centro Cultural São Paulo, ambos espaços lúdicos, de cultura e convivência. Claudio Tozzi, um dos artistas que melhor retratou o período da repressão, pinta uma de suas obras emblemáticas, Multidão (1968).
O núcleo Inteiro e Não pela Metade (1985-2001) parte da música Comida, dos Titãs. “A gente não quer só comida…”, quando o rock brasileiro lança bandas por todo o país. Na arquitetura, em contraponto aos conjuntos habitacionais construídos pela ditadura, aparecem o programa Favela Bairro no Rio e, em São Paulo, as organizações cooperativas. Nas artes, dois artistas multimidias cujas obras pertencem ao Acervo Sesc de Arte Brasileira se destacam: Nelson Leirner, com Obra Sem Título da Série Sotheby’s (1999), e Paulo Bruscky, com Poema Linguístico (1992).
Fecha a exposição Sentimento na Sola do Pé (2001-2018), nome tirado do verso de um rap dos Racionais MC’s, que fala do cotidiano violento das grandes cidades. É quando surgem também os CEUs – Centros Educacionais Unificados, criados pela prefeitura de São Paulo, no governo de Marta Suplicy. Um vídeo traz cenas do cotidiano desigual que invade as cidades brasileiras e nos faz voltar ao sábio comentário de Paulo Mendes da Rocha ao abrir essa exposição: “A arquitetura é uma maneira de dizer quem somos nós e quem seremos nós”.