Lugar-comum, exposição realizada pelo Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC USP), é um exercício de conexão e diálogo que nasce de um projeto voltado para a desierarquização de obras e agentes, misturando categorias e agregando novas camadas poéticas ao longo do tempo. O processo se desdobrou por vários meses e foi organizado em três diferentes fases de trabalho. No Ato 1, 12 artistas de diferentes gerações e linguagens foram convidados a selecionar e mostrar criações de autoria própria e pertencentes ao acervo para exibir. No Ato 2, esses mesmos artistas assumiram o papel de curadores e pinçaram obras da coleção e de autorias diversas para serem exibidas junto com o primeiro conjunto. Já no Ato 3, que pode ser visitado até agosto de 2023 e reúne cerca de 150 obras, foram incorporadas ainda escolhas feitas por esse colegiado, mais a equipe curatorial do museu e seis outros artistas e curadores convidados. É possível identificar por meio do sistema de legendas o momento de incorporação de determinado trabalho, bem como qual artista foi responsável por sua inclusão, caso o visitante tenha interesse em adentrar mais a fundo nos bastidores do processo.
O resultado concreto não foi uma, mas três exposições sucessivas, que foram sendo adensadas a partir das contribuições. A cada ato – como são chamadas as fases pela montagem – novas adições foram trazidas à luz. Peças icônicas ganharam diferentes configurações e convergências pouco evidentes se estabeleceram, gestando um modelo mais horizontal e complexo para se pensar os ocultos nexos poéticos e formais da produção moderna e contemporânea.
São muitos os encontros improváveis decorrentes desse processo. Dentre eles estão a aproximação cromática e formal entre Lucio Fontana, Alexander Calder e Emmanuel Nassar e a ênfase na intensa relação entre arte e o mundo do trabalho presente nas gravuras de Renina Katz e na instalação de Laercio Redondo. Curiosamente, há inclusive duas obras que compartilham o mesmo título, Foi assim que me ensinaram, adotado tanto por Flávio Cerqueira como por Felipe Cama. A natureza-morta e, de forma mais ampla, uma relação afetiva com o mundo das coisas e dos objetos, permeia praticamente toda a exposição, ecoando nas obras de Eleonore Koch, Giorgio Morandi, Marcelo Zocchio, Nina Moares, Sidney Amaral, Yozo Yamaguchi, entre outros. Outro destaque desse processo subjetivo de valorização e ressignificação do acervo – como lugar não apenas de guarda e preservação, mas também de fonte para novas investigações – é o painel de desenhos de Di Cavalcanti selecionados por Carmela Gross dentre os cerca de cinco mil trabalhos em papel do artista modernista presentes nesse acervo.
Enfatizando o caráter processual e polifônico de Lugar-comum, Marta Bogéa, Helouise Costa e Ana Magalhães, que respondem pela curadoria do museu e pela coordenação geral da mostra, relembram como a exposição de certa forma resgata o legado de Walter Zanini. Vista como uma espécie de “mito de origem” do museu, a gestão do crítico à frente da instituição está explicitamente representada pelo resgate – proposto por Rosângela Rennó a partir da leitura de um texto de Helouise Costa –, da mostra Fotógrafos desconhecidos, organizada por ele em 1972. Edital público, teve 263 inscritos. Depois de uma série de desentendimentos entre os jurados, optaram por eliminar qualquer critério de exclusão e exibir todos os trabalhos apresentados. A atual versão reúne apenas as fotos que permaneceram no acervo do MAC, assinadas por autores como Moema Cavalcanti e Paulo Cleto.
A ênfase na liberdade e na experimentação acabou também por movimentar a instituição internamente, envolvendo todas as instâncias do museu, acionando e mobilizando setores como documentação, educativo e conservação das obras, que se ocupam de bastidores e detalhes muitas vezes não tão visíveis. Este último, por exemplo, acabou aprovando, depois de análises técnicas bastante cuidadosas, a ideia de retirar provisoriamente a moldura de telas icônicas como as de Morandi, Volpi e Matisse, num movimento singelo, porém transformador.