Detalhe de Rejeito, de Marcelo Moscheta
Detalhe da instalação "Rejeito", de Marcelo Moscheta, montada a partir de folhas secas feitas de cerâmica. Foto: Filipe Berndt

Caminhando pela Fábrica de Arte Marcos Amaro é possível ver as salas expositivas, esculturas ao ar livre, uma vegetação diversa e muitas folhas secas caídas no chão. Essas últimas podem passar despercebidas aos olhares de alguns, mas foi a partir delas que Marcelo Moscheta decidiu desenvolver um projeto artístico. “A ideia foi trabalhar essas folhas secas, que estavam sendo varridas aqui do espaço, essa natureza que invade a fábrica – que já foi ruína e está em transformação”, conta o artista.

Foi a partir da vegetação seca que Moscheta decidiu refletir sobre outros descartes. A ideia veio logo após a tragédia de Brumadinho, em 2018, quando a lama das barragens assolou a região mineira. Isso acontecia pouco depois do desastre de Mariana, em 2015. A lama que varria vegetação, animais, moradias e vidas humanas tinha nome: rejeito. 

Para o dicionário, “rejeito” pode ser um simples resto, ou aquilo que sobra de qualquer substância submetida a um procedimento e que não pode ser utilizada novamente. Existem rejeitos industriais, nucleares e de mineração. Esse último é o referente aos desastres com as barragens, que carregaram consigo o apagamento de histórias e vidas. É ele também que dá nome ao projeto e à exposição individual de Marcelo Moscheta, Rejeito, na Fábrica de Arte Marcos Amaro.  

Do descarte à memória

“Eu estava muito impactado por aquelas imagens [de Brumadinho], e se falava muito dessa história do rejeito. Pensei em fazer um paralelo entre a história da Fábrica e o que estava sendo o tema do país no momento”. O projeto foi contemplado pelo Prêmio FAMA Museu e Campo da 15ª SP-Arte e o artista passou meses em residência no Museu.  

“Gosto muito de trabalhar essa relação homem-espaço-natureza, como as coisas se dão dentro desse tripé. Então, imaginei que essa ideia do ‘rejeito’, de algo que fosse já descaradamente descartado, pudesse ser invertido em uma aproximação poética aqui para a Fábrica”, explica o artista. Assim, decidiu inverter o sentido do “rejeito”. Se nas tragédias de Brumadinho e Mariana era essa lama que apagava histórias, no projeto artístico era ela quem fazia a arqueologia da FAMA. “É uma ideia de transformação e de tempo. A ideia de uma folha seca condensada em cerâmica – na própria lama -, que é um barro que não encobre a história, mas se torna arqueologia.”

Instalação "Rejeito", de Marcelo Moscheta
Instalação “Rejeito”, de Marcelo Moscheta. Foto: Filipe Berndt

A partir de folhas secas de diferentes plantas, coletadas na Fábrica, Marcelo Moscheta criava moldes em gesso e os transformava em matrizes de silicone. Com auxílio de uma equipe formada por jovens artistas, ele preenchia as matrizes com paper clay – uma mistura de argila com fibra de celulose – e as prensava, formando peças de cerâmica. Elas eram então moldadas, secavam e iam para a queima. O resultado final mimetiza as folhas secas. Ao fim, cerca de 4500 peças foram empilhadas em uma sala, dando origem à instalação Rejeito

Como explica Moscheta, “é uma obra construída a partir de fragmentos mínimos e que toma corpo, volume e presença quando apresentada como acúmulo e aglomeração”. Num mundo em meio à uma pandemia que nos obriga ao isolamento social, isso traz um novo sentido à obra. “Quero falar da força de se estar junto, de aglomerar e marcar presença, mesmo quando, individualmente, parecemos insignificantes, mesmo quando somos o rejeito de um mundo, de um país que tem outros valores e sentidos para o viver”, conclui.

Essa união também esteve presente no processo da obra e da exposição na qual ela se insere. O artista não construiu Rejeito sozinho. “Cada um de nós acaba modelando a folha de uma forma, então cada folha tem a cara de uma pessoa e isso dá uma pluralidade muito grande, por mais que seja a mesma matriz”, diz Eliel Fabro, graduado em Cinema e membro da equipe que auxiliou Moscheta. Ao que a estudante de Cinema Giulia Baptistella complementa: “A gente percebeu que quando moldamos a folha, cada um coloca um pouco de si. Desde abrir a massa, mas principalmente na hora de moldá-la”. 

Em entrevista à arte!brasileiros, os jovens artistas também compartilharam a importância de estarem envolvidos em um projeto como esse: “Foi muito interessante, porque a gente encontra a arte e as suas formas de ser dentro de cada artista, né? Existe uma carga histórica, sentimental e poética que o artista traz consigo”, diz Carlos Mendes. Para o estudante de História, é pela multiplicidade de artistas envolvidos que a “obra transpõe a diversidade de sentimentos, de características, e acaba resultando em um pouquinho de nós dentro da obra do Marcelo”.

Aqui-agora

Porém, essa é uma esfera que não permite tirar de vista a questão ambiental envolvida no projeto e na exposição Rejeito. Em entrevista a arte!brasileiros em março de 2020, Marcelo Moscheta compartilhou sua crença de que esse trabalho seria muito especial para o momento em que vivíamos, “porque trata de alguns pontos que para mim sempre foram importantes, como a ruína, a tensão entre homem e meio ambiente e agora (ainda mais do que antes) essa questão da degradação e da exploração desmedida dos nossos recursos naturais”.

A exposição foi adiada, devido à crise sanitária mundial gerada pelo novo coronavírus, porém isso não tirou a atualidade da proposta artística, já que o assunto não se tornou datado. “Penso que Rejeito se insere temporalmente em um arco que vai de Mariana e Brumadinho até o aumento das queimadas da Amazônia e Pantanal neste ano, passando pela pandemia do Covid-19. Porém, não se prende a eles, uma vez que é universal em seu sentido de tratar de manifestações de preservação da memória da humanidade que nasceram na pré-história e vão continuar ainda sendo mantidas”, explica Moscheta. 

O artista acredita que esse é o início de um novo movimento dentro de suas produções artísticas. “Essa história de um posicionamento um pouco mais crítico frente a essas questões ambientais têm habitado cada vez mais os meus trabalhos”. Assim, a reflexão ecoa pelo restante de sua mostra individual, ocupando a sala com outras produções. Rejeito está em cartaz na Fábrica de Arte Marcos Amaro, em Itu, com entrada gratuita e possibilidade de agendamento prévio online.

Assista ao vídeo e entenda mais sobre o processo de criação de “Rejeito”

 

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