É limitador atribuir à dupla Angela Detanico e Rafael Lain separadamente uma formação quando se fala em sua produção artística. É mais verdadeiro dizer que ambos são linguistas, designers gráficos, tipógrafos e semiologistas. E, claro, artistas. Afinal, há mais de 20 anos juntos, desde que migraram pela primeira vez, do Rio Grande do Sul para São Paulo, tudo o que foi aprendido era compatilhado. Tanto isso é verdade que chega a ser admirável, inclusive, o fato de um completar o outro de forma precisa quando uma palavra foge ao raciocínio, apesar de dificilmente palavras escaparem dessa dupla que a domina. “Uma parte grande da nossa produção é a criação de tipografias, de sistemas de escritas, nos interessamos muito pelos códigos, pelos alfabetos de diferentes lugares do mundo”, conta Angela. A mostra no Espaço Cultural Porto Seguro, em São Paulo, que se estende até 21 de abril, dá a dimensão disso na obra da dupla.
Hoje casados e com dois filhos, Rafael e Angela vivem em Paris e fazem parte de um grupo seleto de artistas, observados de perto por colecionadores e instituições de todo o mundo. A arte passou a ser a dedicação definitiva dos dois quando, em 2002, receberam uma bolsa no Palais de Tokyo. Já trabalhavam com design gráfico, desenvolvendo projetos e identidades visuais.
Angela e Rafael comentam que a ideia para organizar a mostra parte de um conceito de jardim, mas os japoneses, não os parisienses: “Os da França são muito organizados para nós”, ela brinca e continua: “Se bem que somos até bem ordenados nesses trabalhos, mas acho que a experiência de jardim corresponde mais ao japonês, um pouco mais selvagem”. Todas as obras possuem alguma ligação com a luz. Afinal, é a luz que indica a passagem do tempo, que permeia todas as obras em algum ponto. E é a luz que mantém um jardim vivo e forte.
Os primeiros trabalhos que o público encontra ao adentrar a exposição não dão ainda o tom exato do que será encontrado no andar de cima e no subsolo, além das obras na parte externa do prédio. Apesar de todos terem um diálogo entre si e partirem de códigos, não se invadem e não ditam uma obviedade. Cachoeira do silêncio (2018) foi produzida especialmente para a parede diagonal na entrada do local. Tendo como base uma foto de uma cachoeira que a dupla visitou em Kyoto, é trabalhada verticalmente em cima das linhas de pixels da imagem, desencadeando as cores por toda a parede, explica Angela: “É uma imagem fixa que vai sendo mostrada pouco a pouco”. Rafael conta que o som que acompanha a obra é o original da cachoeira japonesa.
Outra obra que representa um lugar afetivo para os artistas e que é mostrada pela primeira vez é Da Luz ao Paraíso (2018), que remonta o percurso entre os bairros paulistanos, respeitando o traçado das ruas e o relevo do trajeto. No mesmo ambiente, é reproduzida em uma parede Ulysses (2017), trabalho no qual uma figura humana definida por palavras caminha, em referência ao livro homônimo de James Joyce. Na narrativa, a personagem principal caminha pela cidade de Dublin durante 18 horas, redefinindo sua relação com o espaço (a cidade) e o tempo. O texto que constrói o corpo na parede é o livro de Joyce, cada passo é uma página virada.
Essa sensação da modificação do espaço e do tempo pode ser sentida por quem visita a exposição, que está a todo momento trazendo a reflexão sobre essa temporalidade. E é essa a intenção da dupla, podendo-se dizer que concluem esse desejo com sucesso.
Também inédita, a obra Nuvens de São Paulo (2018) esconde um texto de Oswald de Andrade, graficamente transformado em formatos de nuvens ao serem desfocadas, que se deslocam pela enorme tela na parede do mezanino. A literatura se faz muito presente na vida de Angela e Rafael, sendo material de muita pesquisa também: “A nossa biblioteca é uma parte muito importante da nossa vida”, reconhece Detanico. E a linguagem, seja por códigos, pixels, palavras ou imagens, permeia toda a exposição. Tudo se vincula também à origem do casal, que começou a trabalhar em conjunto na área do design gráfico, especialmente com tecnologia, no final dos anos 90.
No mezanino, os artistas explicam a vontade de trabalhar usando a arquitetura do espaço na construção da paisagem: de um lado as nuvens, opostas à cachoreira. No chão, a instalação Onda de Sal (2010), sendo uma figura formada pela palavra “onda”, escrita em um código criado pela dupla: “Uma parte grande da nossa criação diz respeito ao desenvolvimento de novas tipografias. Nos interessamos muito pelos alfabetos, as diferentes formas de escrita pelo mundo”. A geometria das letras nesse alfabeto cria diferentes modulações para a onda.
Já em outra parede, o público se depara com as 28 Luas (2014), uma videoinstalação onde a figura é formada pelo texto (assim como em Ulysses). No caso, a figura de uma lua é construída pelo texto de Galileu Galilei na primeira vez que observou o satélite, cada um dos vinte e oito minutos pelos quais o vídeo se estende forma um estado da lua a cada 28 dias de sua variação durante um ciclo. Outra experiência com a lua espera o público no subsolo: Mares da lua (2018) é uma videoinstalação que reflete em telas compostas por pedrinhas de jardim o nome dos mares presentes no satélite, como Mar da Tranquilidade e Mar das Ilhas. A luz cai sobre posições de letras, como uma gota, também em um código, formando as palavras e se abrindo pelas telas.
Para trazer uma reflexão sobre os problemas contemporâneos que envolvem um espectro geopolítico, Detanico Lain achou pertinente que a obra Ruído branco (2006), que teve estreia durante a Bienal de Veneza, fosse incluída na mostra. Fechando o percurso de 14 obras, várias imagens de satélite de um espaço da Floresta Amazônica são colocadas em camadas, aos poucos isso ganha intrusões de um branco, sendo apagado continuamente, fazendo referência aos problemas do desmatamento e as questões climáticas: “Se em 2006 isso era importante, agora isso é urgente”, dizem os dois quase em uníssono.
O Espaço Cultural Porto Seguro fará uma série de atividades relacionadas à mostra durante o período expositivo, que vai de 19 de janeiro até 7 de abril. Uma dessas atividades, ainda sem data, consiste na apresentação de uma performance pela SP Companhia de Dança, em um espaço reservado na instalação de Quadrado branco, trabalho que se desdobra a partir de três poemas do japonês Kitasono Katue. A obra foi criada em uma residência feita pelo casal no Japão, na qual se propuseram a estudar os textos do poeta.