Os escritos de artistas tornaram-se estruturas onipresentes no circuito internacional de arte por volta dos anos 1960, quando novas narrativas ganharam espaço e aprofundam a natureza do exercício da crítica. Essa atitude representou uma transformação significativa na articulação da teoria da arte. A retrospectiva Tunga: conjunções magnéticas, composta de aproximadamente 300 obras expostas no Itaú Cultural e no Instituto Tomie Ohtake – com correalização do Instituto Tunga – é permeada de pensamentos, curiosamente híbridos, revelados em texto ou na fala do artista. Seu imaginário ficcional é paradigma dos insights afetivos que potencializam a construção de mitologias individuais apoiadas na ciência, arqueologia, zoologia e, sobretudo, na literatura. A psicanálise emerge em pequenos apartes narrativos, como agente de um exercício da transitoriedade com doses de razão, humor e ironia. A linguagem de Tunga, repleta de metáforas em sua essência simbólica, vivencia desvios, penetra em estruturas precárias carregadas de prazer sensual e secreta provocação.
A curadoria de Paulo Venancio Filho promove boas e amplas escolhas e coloca em pauta obras/verdades de Tunga em uma exposição sem ordem cronológica e que mistura trabalhos de todas as épocas, até 2016, ano da morte do artista. O espaço torna-se exíguo para expor tamanha produção, mas a expografia é salva pelas vitrines e ilhas instaladas pelo espaço expositivo. A infinidade de objetos, aparentemente embaralhados e desconexos, confirma a organicidade do universo de Tunga. Ele sempre gostou de bagunça. Não de ordem nem desordem. “Bagunça!”, como ele dizia. “O que tenho na mão vou mexendo até perder, para depois achar de novo. Achando o que perdi, acho o novo de novo, reencontro o novo no velho – é como a luz, a velha luz, descansada e sempre nova de novo”. Essa narrativa, tão repetida por ele, abre o livro Barroco de Lírios (1997), editado pela Cosac & Naify.
Antônio José de Barros Carvalho e Mello Mourão (1952-2016), ou simplesmente Tunga, nasceu em Palmares (PE), cresceu e viveu no Rio de Janeiro. Morou numa mansão de Cosme Velho, de seu avô materno, o senador Barros de Carvalho, colecionador de arte brasileira moderna e barroca. Ele foi um dos responsáveis pelas leituras sistemáticas de Tunga sobre grandes filósofos, escritores e poetas. Nem por isso o artista projetou intelectualizar sua arte, ele escolheu e codificou visualmente os objetos, retirando-os do cotidiano ou não, fazendo-os dialogar naturalmente com o espaço. Os textos ficcionais de Tunga são desenvolvidos com escritas que surgem a partir de mitologias pessoais com as quais ele constrói, desconstrói, reconstrói sua obra, em releituras permanentes. A palavra e a imagem, segundo ele, tocam-se intimamente, sem relação hierárquica entre elas, mas numa espécie de cópula, fricção que gera um terceiro elemento. Há muitas histórias diluídas em suas “instaurações”, termo que ele cunhou para substituir “instalações”, como em From ‘la voie humide’, (2014), considerada sua última série de esculturas. Essa composição espacial se dá por meio das possíveis configurações entre os objetos trabalhados em gesso, terracota e cristais, sustentados por uma espécie de tripé, com caldeirões e partes de corpos em referência direta à alquimia.
Como define Nicolas Bourriaud, cada exposição contém o enredo de outra, cada obra pode ser inserida em diversos programas e servir como enredo múltiplo. O conceito se encaixa na remontagem da enorme escultura Gravitação magnética, composta de chapa de aço, limalha de ferro, e longos fios de aço que em 1987 alcançavam todos os andares do pavilhão da 19ª Bienal de São Paulo, sob a curadoria de Sheila Leirner. Agora, no Tomie Ohtake, a peça não causa o mesmo impacto devido à interferência visual no espaço, aberto a outros departamentos. No entanto, vale a pena revê-la.
Outro momento especial é a videoinstalação Ão, de 1981, que marcou a estreia de Tunga no audiovisual, filmada em 16mm e looping. A projeção agigantada em uma sala no Tomie Ohtake fixa-se na curva de um túnel, como se não houvesse entrada nem saída e fosse impossível sair de dentro. Lugar, corpo, ação e movimento abrem espaço para reflexões sobre tempo/memória, elemento primordial nessa obra, cuja trilha sonora Night and Day tem interpretação de Frank Sinatra. Segundo Paulo Venancio, o espectador se vê envolvido por dois movimentos contínuos: o do filme que circula pela sala e o da imagem projetada na tela, tal como se fosse colocado “dentro” de uma escultura visual. A obra impactou Walter Zanini, que a exibiu na 16ª Bienal de São Paulo de 1981, quando foi o curador-geral.
Corpo e erotismo permeiam a produção do artista por suas significações. Segundo a psicanalista Suely Rolnik, as obras de Tunga são vibráteis por meio de atrações estranhas, de tensão erótica, de montagens inusitadas. A emblemática instalação Piscina, mostrada uma única vez em 1975, e desaparecida na mesma época sem deixar rastro, foi remontada. O trabalho exibe um tripé, sobre ele um boné com o título da obra grafado em letras de chumbo, enquanto uma bomba de ar é pendurada por corrente e uma fotografia submersa flutua em suspensão. O trabalho foi feito em 1975, nos piores momentos da ditadura no Brasil, e deixa latente o pensamento de Tunga sobre a natureza política da imagem. Esse é considerado por Paulo Venancio Filho como um dos primeiros experimentos de Tunga com objetos, que se tornaram recorrentes em sua produção. A exposição ainda resgata raridades como Desenhos Protuberantes, Vê-nus, que Tunga chama de obras decorrentes de histórias ou histórias decorrentes de obras. As narrativas são uma forma de desenho que usa como linguagem, como na série Objeto do Conhecimento Infantil, composta por aquarelas e nanquim, dos anos de 1970. Nesse sentido, a exposição se vale de registros e da preocupação do artista com a formação de um arquivo. Nessa linha evolutiva, a retrospectiva traz projetos em cerâmica e metal, esboços para futuras obras, joias desenhadas por ele, vídeos, fotografias, textos. Enfim, um resumo dos enigmas deixados por Tunga que colocam em xeque o que se anuncia, o que se vê, o que se compreende e o que permanece.