Mesmo com as particularidades de cada nação no enfrentamento à Covid-19, é possível que estabeleçamos uma comunicação com o restante do mundo, que adentrou as medidas de quarentena há um tempo considerável, mesmo que psicologicamente estagnado.
Neste período, alguns fotógrafos continuam saindo à trabalho, se esgueirando pelas alas permitidas dos hospitais na tentativa de fornecer registros imagéticos do aqui/agora. No “por trás da cena”, eles estão cobertos da cabeça aos pés, usando máscaras, luvas e óculos protetores, tal qual Andrea Frazzetta, cujo trabalho será abordado abaixo.
Outros já viram seus movimentos inevitavelmente restritos ao lar, o que faz com que sua hiper-sensitividade se volte para suas próprias casas e, em uma realidade estendida, seus bairros e vizinhos – a uma distância recomendada. Tendo isso em vista, a Agência Magnum iniciou o projeto “Diários de uma Pandemia”, concentrando em uma página constantemente atualizada os novos trabalhos feitos pelos fotógrafos nesse tempo onde a consciência se altera, inquieta, entre expansão e repouso. A cada semana é apresentada uma edição dessas imagens, selecionadas pelo coordenador do projeto Peter van Agtmael, ao lado de notas e reflexões pessoais dos fotógrafos sobre como eles estão enfrentando a situação à medida que ela se desenrola.
Na Normandia (França), avós fazem uma surpresa no meio da aula de violoncelo de sua neta, mediados por uma janela de vidro; em Thokoza (África do Sul), com o retrato de sua mãe repousando só, o filho lamenta a distância social necessária e reflete sobre as famílias com cinco ou dez pessoas que vivem em um barraco – o quão difícil deve ser para elas manter a distância necessária; em Delhi (Índia), a moradora de um Barsati (apartamento pequeno na cobertura de prédios, geralmente de apenas um quarto) olha para seus vizinhos com curiosidade voyeurística à medida que as idas ao terraço tornam-se rotineiras.
Robert Adams volta para casa
No período em que nós nos agarramos aos interiores e exploramos o exterior por janelas indiscretas, a Aperture lançou seu novo volume sob o mote “Casa & Lar”, por “previsão do futuro” ou timing inexplicável. Nele, um artigo por Lena Fritsch caminha pelas diferentes expressões na língua japonesa que poderiam ser equivalentes, em momentos distintos, ao nosso “lar” – palavra inexistente em japonês. Fritsch faz isso relacionando as expressões com trabalhos fotográficos de Daido Moriyama, Kazuo Kitai e Ishiuchi Miyako. Um lembrete da potência da fotografia japonesa. Já Pico Iyer traz de volta os lares de Robert Adams, fotógrafo estadunidense que começou a fotografar no meio da década de 1960, chegando à proeminência na década seguinte com sua série “As Planícies” (The Plains) onde retratava a vastidão do oeste estadunidense.
Seu trabalho o colocou como uma das figuras centrais no movimento dos “Novos Topógrafos” (New Topographers), um termo cunhado por William Jenkins para descrever a documentação visual de paisagens alteradas pelo homem. Nos registros selecionados por Iyer, ao invés de destacar os efeitos da industrialização sobre o que antes era um imponente deserto, o ensaísta se volta às fotos de interiores capturados por Adams. “Eu queria apenas mostrar o que havia nas casas que faziam parte do meu assunto principal, a nova paisagem do oeste. Eu também esperava, no entanto, encontrar evidências do cuidado humano”, relata Adams à Aperture.
Em seu texto, Iyer aponta para uma “fragilidade corajosa” que entra no lugar da “majestade da natureza” nesses trabalhos raramente vistos. “Um olho cruel pode ver as coisas que colecionamos como tolas, impróprias; um olho compreensivo vê que é tudo o que temos”, complementa o autor do texto. À parte da ótica “mais transcendental” escolhida por Iyer, o espírito do trabalho pode vir também de uma questão muito mais simples que abre espaço para identificação: é difícil enclausurar esses lares em um tempo-espaço muito específico. As casas de muitas pessoas podem estar espelhadas nessa série, se não as suas, então dos seus amigos, de suas avós, de um parente distante ou ex-namorado.
A escolha estética de Adams, seu estilo quase imposto como assinatura, entrega, junto com a ternura dos lares, uma melancolia, um sentimento de solidão que podemos tão bem identificar no nosso cotidiano atual. Contudo, o “nós” nessa sentença é um “nós” seletivo: pessoas com casa; casas razoavelmente espaçosas. Quando escolhemos o lar como uma imagem, fotográfica e mental, simbólica da quarentena, um filtro já é colocado em quais pessoas são representadas por essas imagens. Enquanto decidimos passatempos na quarentena, os ansiosos por um refúgio não veem tão longe. O isolamento recomendado para uma população sem casa é um limbo entre dois países, onde um arde, o outro tem sede, e ambos precisam de água, como escreveria Warsan Shire.
Existe um rosto para a pandemia?
Em uma pandemia, é comum a busca por um “rosto”, uma imagem simbolizante, uma foto que represente o zeitgeist. Com isso, há o risco de cair em uma representação achatada e ignorar outros múltiplos protagonistas nessa narrativa, ao designar uma face para um acontecimento de tamanha proporção. Antes de nos voltarmos para a figura do lar surgiram as cidades fantasma, por exemplo, e precedendo as imagens de comprimidos e vacinas, temos a figura dos médicos.
Ao contrário de outras pandemias nas quais o termo peste foi empregado – com infortúnio – como metáfora, na construção incipiente das imagens desta crise a figura dos doentes não aparece ainda em volume considerável, talvez como uma lição aprendida em relação ao respeito aos retratados. Talvez porque, pelo que se observa até o momento, o Covid-19 não deixa sinais físicos suficientes para ter valor notícia pelo choque pela deformação; de todo modo, a busca por imagens mais dramáticas é “parte da normalidade de uma cultura em que o choque se tornou um estímulo de consumo e fonte de valor”, como escreveu Susan Sontag. Neste momento da crise, nós temos as pessoas que trabalham no front das epidemias nacionais, principalmente médicas e enfermeiros.
Na capa da revista dominical do The New York Times está Monica Falocchi, enfermeira chefe da Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Civil de Brescia. Para Andrea Frazzeta, ela posou com os olhos de alguém “que acabou de sair do campo de batalha”. Frazzeta foi o responsável pelos perfis fotográficos contidos na revista. Ele decidiu documentar o trabalho desses profissionais nas cidades de Brescia, Bergamo e Milão depois de ver as selfies tiradas por médicos e enfermeiras com os rostos machucados pelo uso da máscara por tanto tempo.
Muitos deles foram fotografados no final de seus turnos, capturando um momento em que o desgaste e a fadiga são evidentes em seus rostos. No processo, o fotógrafo ficava a um metro e meio de distância, vestido com roupa protetora, óculos, luvas e máscara.
No meio da reportagem, Anna Maria Mentuni, a mãe de Frazzeta, ficou doente com Covid-19 e acabou falecendo no dia 26 de março. O NYT Magazine publicou a última foto que ele tirou da mãe, logo após ter deixado suas compras de supermercado na porta dela; naquele dia, eles conversaram pelo telefone, embora estivessem no mesmo lugar, um atrás de sua máscara e a outra através da janela da frente, a alguns metros de distância.