Após uma crise de cerca de 30 anos, com o encerramento da maior parte de suas atividades, a Casa do Povo – centro cultural fundado em 1946 por judeus progressistas no bairro do Bom Retiro – vivenciou uma intensa e vigorosa retomada a partir do início desta década. Em poucos anos se consolidou como espaço cultural prolífico, palco para vivências e práticas artísticas nas mais variadas áreas, voltado tanto para a produção experimental e contemporânea quanto para a preservação da memória.
Com a reabertura de sua biblioteca no último sábado, 11 de maio, a Casa do Povo dá mais um importante passo no sentido de retomar sua história e, ao mesmo tempo, se abrir à sociedade como polo de convivência e produção de conhecimento. Com cerca de 8 mil livros (metade deles escritos em ídiche) e um vasto arquivo de documentos, fotos e publicações, a biblioteca reabre após quase 40 anos fechada – desde o encerramento das atividades do Ginásio Israelita Scholem Aleichem, que funcionou no edifício dos anos 1950 até 1981.
“Já passaram por aqui várias gerações, inclusive muitas pessoas que já morreram, mas a gente tem esse acervo, esse arquivo, que é o núcleo duro da Casa. É o que conta a história”, afirma Marilia Loureiro, curadora e programadora da Casa do Povo. A partir dos anos 1980, com a crise, a biblioteca foi preservada pelo trabalho voluntário de duas associadas, Marina Sendacz e Leda Tronca, que, mesmo sem recursos, conseguiram manter o acervo. “Se não foi possível tornar isso público antes, elas conseguiram não deixar entrar em decadência. Então eu diria que elas são as heroínas invisíveis dessa história”, diz Loureiro.
A biblioteca reúne acervos de diferentes instituições que já passaram por ali, como o Clube Cultura e Progresso, o Clubinho I. L. Peretz e o colégio Scholem Aleichem, além de livros trazidos por imigrante judeus fugidos da Segunda Guerra Mundial e coleções pessoais doadas por intelectuais como, por exemplo, o arquiteto Ernest Mange, que projetou o prédio modernista em que está a Casa, inaugurado em 1953. Agora, se somam ainda os acervos de alguns dos mais de 20 grupos e coletivos que habitam o espaço atualmente: as modelagens do Ateliê Vivo, as tipografias do Ocupeacidade, os pôsteres e publicações do Parquinho Gráfico e as partituras do Coral Tradição, entre outros.
A reformulação e reabertura da biblioteca foi possibilitada pela aprovação do projeto “Arquivo Vivo” no PROAC-ICMS, em 2016, que resultou na captação de 160 mil reais entre empresas e pessoas físicas principalmente no bairro do Bom Retiro. A aprovação desencadeou também um intenso debate entre diretores, associados e os grupos que utilizam a Casa, como conta Loureiro: “Nossa proposta é lidar com os espaços de modo flexível, coletivo, sem que ninguém seja dono de nenhum espaço e todos possam transitar entre eles. Então alguns grupos ficaram incomodados e colocaram perguntas muito pertinentes, que fizeram a gente aprofundar a reflexão: onde vai ficar essa biblioteca? Ela vai trancar o espaço? Algum grupo vai ter que sair do lugar que costuma usar? Quem vai ler esses livros em ídiche? Qual o sentido de reabrir esse acervo hoje?”.
Depois de quase seis meses de discussões internas, ficou clara a necessidade de ouvir pessoas com maior expertise na área. Um seminário que havia sido pensado para marcar a abertura da biblioteca foi antecipado, e representantes das bibliotecas do Centro Cultural São Paulo, do Centro de Memória do Museu Judaico, do Assentamento Povo Sem Medo (MTST) e do Sesc Bom Retiro foram convidados para falar sobre suas experiências. Diversos debates foram levantados, entre eles discussões sobre como atrair leitores; qual o perfil do público do Bom Retiro; como trabalhar com livros em ídiche; como fazer uma biblioteca móvel – que possa ser facilmente montada e desmontada; e como fazer a biblioteca ser não só um espaço de silêncio, mas também de realização de leituras e atividades abertas.
Segundo Loureiro, o seminário resultou em alguns insights importantes. Primeiro, a percepção de que os acervos dos coletivos que habitam o espaço também deveriam ser parte da biblioteca, de modo que ela não ficasse “imobilizada” e desconectada do que é a Casa hoje. Além disso, ficou claro que para formar público – “já que uma biblioteca sem leitores é um depósito” – era importante envolver as pessoas já no processo de realização da biblioteca, como foi feito. E, por fim, a constatação de que o acervo não precisaria estar todo em um só lugar, fisicamente estático.
Para concretizar essa ideia, o Grupo Inteiro – coletivo que atua nos campos da arquitetura, design e artes visuais – foi chamado para pensar os móveis da nova biblioteca. Uma configuração que pode ser expandida por todo o andar ou retraída em apenas um canto do salão foi concebida, de modo que a biblioteca não se tornasse um obstáculo para o funcionamento flexível da Casa.
A abertura da biblioteca contou com uma conversa com Gita Guinsburg, diretora da Editora Perspectiva. Em julho, uma grande atividade de ativação da biblioteca – que se soma a outras que já foram realizadas, como uma primeira triagem dos livros – acontecerá a partir da instalação Voz Ativa: Biblioteca Social, da artista Mariana Lanari. Os 8 mil livros do acervo serão distribuídos no maior salão do prédio, replicando o mapa de alguns quarteirões do Bom Retiro e, durante um mês, os visitantes poderão participar de um grande “mutirão de leitura”. “Vamos chamar pessoas e grupos para lerem esses livros e o áudio das leituras será mixado ao vivo pela artista, fazendo disso uma performance coletiva que mapeia os assuntos da biblioteca, forma público e ao mesmo tempo funciona como motor que coloca em movimento esse acervo,” diz Loureiro.
Reabertura da Biblioteca da Casa do Povo
Rua Três Rios, 252 – Bom Retiro, São Paulo
Dia 11 de maio, a partir das 10h.