Desde o dia 1º de setembro passado, o Museu de Arte Moderna do Rio (MAM Rio) tem à frente uma nova direção artística, escolhida a partir de um edital público, em um exercício de transparência raro no cenário nacional. A proposta veio do diretor executivo do museu, Fabio Szwarcwald, que assumiu o posto no início do ano.
Essa nova direção artística carrega ainda outra novidade: a gestão exercida por uma dupla, a brasileira Keyna Eleison e o espanhol Pablo Lafuente, que vive no Brasil há sete anos, desde que fez parte da equipe curatorial da 31ª Bienal de São Paulo, intitulada Como (…) coisas que não existem. Em comum, ambos passaram “pelas várias posições que envolvem a prática da arte: escrita, curadoria, gestão, educação”, como definiu Lafuente durante entrevista virtual concedida à arte!brasileiros no início de outubro. Entusiasmados na nova função, respondiam com humor e se revezando, em uma sintonia característica de casal novo.
Durante a ditadura militar, o MAM carioca protagonizou alguns dos momentos mais marcantes da história da arte no Brasil, como na mostra Nova Objetividade, em 1967, onde Hélio Oiticica apresentou seu penetrável Tropicália, e nos Domingos da Criação, encontros promovidos por Frederico Morais com artistas experimentais na área externas do museu, em 1971. Desde então, contudo, a instituição foi se fechando e há muito deixou de ser referência, desafio que se impõe à dupla. “Nós compartilhamos essa leitura sobre a potência histórica e, em nosso projeto, discutimos o que pode ser um processo de abertura do MAM”, conta Eleison.
“O MAM, mesmo antes do Frederico Morais, começa em um prédio que era o Bloco Escola (inaugurado em 1958) e só depois vem o Bloco de Exposições (1967). Então, ele já começa com práticas outras como a pedagogia, que faz parte da criação, e resulta em processos de exposição, que por sua vez resultam em projetos pedagógicos, tudo isso acompanhado da Cinemateca, um arquivo que se conserva e se exibe. Essa conjunção de práticas é fundamental para a história do MAM”, explica Lafuente. Para ele, isso representa “uma complexidade orgânica, onde todos os processos se alimentam uns aos outros, sem que nenhum deles seja o centro”.
Levando em conta essa contextualização, a nova gestão chega cumprindo a agenda deixada pelos antecessores. “A gente tem um legado institucional para celebrar. E a palavra é mesmo essa, porque é comum que, quando entra uma nova direção, a antiga seja demonizada. Não é nesse sentido que queremos trabalhar. Então será a partir de julho do próximo ano que teremos uma contundência maior”, conta Eleison. Fernando Cocchiarale e Fernanda Lopes deixam a curadoria em outubro e uma nova vaga se abre e será preenchida por concurso.
Mas, se do ponto de vista da programação a proposta da dupla só será mesmo mais visível em 2021, há um componente de gestão distinto, como afirma Lafuente, que já será exercido agora: “O MAM não tinha direção artística. Tinha curadoria, curadoria da cinemateca. Entramos com a responsabilidade de criar uma identidade de projeto artístico para essa diversidade de ações.”
Assim, para além da própria programação, há uma nova atitude a ser revista no museu criada a partir da gestão compartilhada. “A dupla é importante para nós porque cria uma diversidade obrigatoriamente. Não tem como duas pessoas terem um olhar idêntico. A gente coincide em muitas perspectivas, mas também diverge em apreciações e histórias. A diversidade é constitutiva e a negociação também”, segue Lafuente.
No projeto vencedor apresentado à comissão de seleção para a diretoria artística do museu, com 38 páginas, o trabalho em dupla é colocado em uma contextualização histórica: “Diretorias duplas não são novidade em contextos artísticos ou em cenários não artísticos. Um dos princípios operativos do Partido Verde alemão é o Doppelspitze, que determina que todas as diretorias devem estar formadas por duas pessoas, uma de gênero feminino e outra masculino”.
Propor novas formas de gerir instituições de arte é essencial no contexto brasileiro, marcado em geral por uma grande centralização e personalização, já a partir de suas presidências, como ocorreu no MAM paulista durante a gestão de Milú Villela, que permaneceu no poder por nada menos que 24 anos, de 1995 a 2019, com poderes absolutos.
Nova ordem
“Queremos entender o MAM como uma estrutura só, o que é o nosso maior jogo dentro da instituição”, conta Eleison, que é completada por Lafuente: “A gente está criando corpos de decisão mais extensos; não é apenas a pessoa que está na gerência de educação e participação que vai decidir isoladamente qual será o programa público, mas ela vai ativar outras áreas de dentro e mesmo de fora do museu.”
Com isso, para se pensar como um museu deve atuar agora, a nova gestão busca exercitar isso na administração da própria instituição, criando relações mais horizontais? “Estamos tentando trabalhar desverticalizando o museu. Acho melhor a expressão desverticalizar do que horizontalizar, porque o próprio termo horizontal não procede no dia a dia. Afinal, nós continuamos sendo os diretores artísticos, há gerentes, têm nomeações que são importantes para serem dadas e responsabilizadas, e tem salários também”, define Eleison.
“A gente tem que negociar nossas propostas com diferentes equipes, somos responsáveis por um grupo grande, e têm outras gerências que não são nossas. Então temos uma proposta que tem que ser negociada por quem está aqui”, conta Lafuente.
Com isso, eles esperam socializar, com públicos internos e externos, as decisões, tanto artísticas como de gestão. E ao dar visibilidade esses processos podem ser monitorados e avaliados. “Queremos forçar a estrutura para ver até onde ela pode chegar, repetir por repetir não faz sentido”, diz Lafuente. No projeto apresentado há um cronograma detalhado de como se dará o processo de tomada de decisões no museu, que inclui reuniões semanais e quinzenais das equipes.
Entre as ações que devem marcar a gestão está a própria utilização do edifício icônico projetado por Affonso Eduardo Reidy (1909-1964). “Recuperar a visão do prédio é fundamental, já que é um museu que se pensa estruturalmente aberto. O Reidy tem um texto muito bonito sobre a luz que entra pelas janelas, de como ela cria uma experiência sensorial que enriquece qualquer experiência das obras de arte. Isso na história da arte é polêmico, pois escapa do cubo branco. E ao longo dos anos foram sendo dispostas paredes na frente das janelas para que a luz, o sol, as árvores e as pedras gigantes da Baía de Guanabara não entrassem. A gente quer recuperar isso física e simbolicamente, que o externo influencie o interno”, conta Lafuente.
Outro eixo que a dupla pretende implementar é abrir a instituição para aquilo que não está lá – objetos, saberes, pessoas – poder entrar, como diz Eleison: “É uma gestão de questionamento institucional muito forte. Uma das grandes questões é não só olhar para a inexistência de corpos, inteligências e objetos dentro das coleções, mas quando elas entram, como elas o fazem. Enquanto mulher preta me interessa um tipo de pesquisa sobre as pessoas que não foram colocadas aqui, o porquê elas não foram colocadas aqui e o que elas estavam fazendo”.
Com isso, o MAM Rio pode exercer uma relação mais autêntica com a produção que agora vem ocupando outras instituições, como a feminina, a negra, a indígena ou a queer – mas de forma um tanto estatística, como para cumprir uma agenda, sem, contudo, criar vínculos efetivos. “Nós não queremos trabalhar com a ideia de convite, porque quando há convite, está claro que o convidado não é daquele lugar. E nós queremos muito questionar a ideia do exótico, porque o que se chama de exótico é formativo da nossa estrutura”, conclui a diretora.