Em quase quatro décadas de história, desde a realização do primeiro festival em 1983, o Videobrasil expôs em seus eventos, publicações e plataformas alguns milhares de obras de artistas brasileiros e estrangeiros. Em um primeiro momento eram apenas trabalhos de videoarte, mas com o tempo foram incluídas outras formas de arte eletrônica, performances e, na última década, as mais variadas linguagens contemporâneas. Foi ainda nos primórdios desta trajetória, quando fundou a Associação Cultural Videobrasil em 1991, que Solange Farkas percebeu a importância da criação e manutenção de um acervo – que incluísse tanto as obras apresentadas nos festivais (hoje Bienal Sesc_Videobrasil) quanto os mais variados conteúdos produzidos pela instituição.
“A associação foi criada em um gesto que visava preservar e ativar o espólio artístico formado pelo festival. E isso está profundamente contaminado pelo fato de não haver no país uma política cultural consistente e sistemática, especialmente no que diz respeito à preservação da memória e a ativação de bens e patrimônios importantes”, afirma Farkas. “Então acho que já naquela época eu intuí a necessidade de arquivar e salvaguardar esses residuais que o festival produzia, suas discussões, sobretudo por conta do contexto político.”
O resultado destes 37 anos de arquivamento são cerca de 1560 obras, um acervo bibliográfico com mais de 5 mil títulos e um acervo documental de 11 mil itens – que inclui a documentação audiovisual produzida pelo próprio Videobrasil, entre depoimentos e entrevistas de artistas e curadores. É um destes trabalhos, o documentário Abdoulaye Konaté – Cores e Composições, de Juliano Ribeiro Salgado, que inaugura o mais novo projeto da associação, a plataforma Videobrasil Online, que dá continuidade às duas missões básicas da instituição, segundo Farkas: democratização do acesso à produção da região do Sul Global e rearticulação constante dos conteúdos da coleção, em consonância com as urgências de cada momento.
O termo Sul Global, utilizado pela instituição desde os anos 1990, se refere à condição cultural, econômica e política de países e territórios à margem da modernização hegemônica e do capitalismo central. Apesar de não ser um termo estanque, refere-se basicamente à regiões do mundo como América Latina, Caribe, África e Oriente Médio, além de parte significativa dos países da Ásia, Europa Oriental e Oceania.
Quanto à rearticulação constante do acervo, o VB Online surge após outros projetos como o ff>>dossier, a PLATAFORMA:VB, o Canal VB e o recente Acervo Comentado Videobrasil, sempre voltados à divulgação desta produção. No caso da nova plataforma, no ar a partir desta sexta, 4 de setembro, Farkas explica que ela funcionará como um espaço expositivo “não cumulativo”, em que cada mostra virtual fica no ar por cerca de um mês e, após o período, o conteúdo é retirado para a entrada de uma nova exposição.
“Esse é um projeto que está na minha cabeça faz um tempo, porque é um pouco um caminho natural ir para o online e para o streaming. Mas ele foi acelerado por tudo isso que aconteceu, pela pandemia e o isolamento social”. Além disso, segundo Farkas, o novo site supre, em parte, a ausência do Galpão Videobrasil, espaço expositivo da associação que foi fechado no fim de 2018. Apesar de a ausência da presença física impossibilitar certos tipos de vivência, a diretora do Videobrasil acredita que o espaço online apresenta também as suas vantagens, especialmente no que se refere à democratização do acesso. “O alcance é extraordinário, porque não estou falando mais com o público da bienal ou do galpão, mas com um público global, com qualquer pessoa que tenha internet. E nessa ausência do espaço físico, ficou muito claro para mim que o lugar do vídeo é de fato na telinha. E que faz sentido, mais do que nunca, voltarmos a focar no vídeo, que é a origem da associação.”
Documentários, individuais e curadorias
Abdoulaye Konaté – Cores e Composições, documentário inédito que marca a estreia do Videobrasil Online, é o mais recente trabalho de uma série sobre artistas contemporâneos produzidos pela instituição. O filme de Juliano Salgado apresenta a obra do artista malinês Abdoulaye Konaté, um dos mais destacados criadores da África Subsaariana, que teve trabalhos comissionados para a 19a Bienal Sesc_Videobrasil em 2015 – posteriormente apresentados na Bienal de Veneza. Produzido naquele período, o filme acompanha Konaté em sua visita ao Brasil e em períodos no Mali e na Dinamarca.
Além dos documentários, o projeto do Videobrasil Online se desenha em torno de outros dois formatos fixos, as individuais de artistas e as curadorias. Os três modelos de mostras serão disponibilizados de forma alternada ao longo dos meses. No primeiro grupo, além do filme sobre Konaté, serão apresentados documentários sobre Olafur Eliason, William Kentridge, Akram Zaatari, Coco Fusco e o coletivo Chelpa Ferro, entre outros. Nas individuais, a série começa já no próximo mês com uma mostra de Ayrson Heráclito e segue com nomes como Carlos Nader, Jonathas de Andrade, Gabriela Golder, Enrique Ramirez e Liu Wei. As curadorias, por fim, apresentarão seleções de vídeos organizadas por curadores – são cogitados nomes como Juliana Borges, Julia Rebouças, Raphael Fonseca, Koyo Kuoh, Renee M’Boya, Alexia Talla e Marina Fokidis.
“Tudo é pensado em torno do acervo, mas não quer dizer que não possam entrar trabalhos que não estejam nele. Obras que ajudem a dar um panorama mais completo, dentro da perspectiva do curador ou do artista, são muito bem vindos”, diz Farkas. “São ferramentas que vamos criando para recontextualizar o acervo e contribuir não apenas com a veiculação e difusão dos trabalhos dos artistas – claro que isso fundamentalmente -, mas também com importantes reflexões contemporâneas”.
Reflexões sobre temas como o racismo estrutural, os ataques aos povos originários, as desigualdades resultantes da globalização e a destruição do meio ambiente, entre outros, se apresentam para o Videobrasil como questões não apenas brasileiras, mas latentes em grande parte do Sul Global. “Isso tudo diz respeito não só a nós, por mais que estejamos em uma situação muito acentuada no Brasil. E eu acho que nunca foi tão necessário fazer essas trocas, fazer uma reflexão sobre essas questões que estão provocando esse grande mal estar, esse desajuste no mundo”, diz Farkas.
Voltando à constatação inicial, sobre os motivos da criação do acervo, ela conclui: “Porque os países que fazem parte desse recorte geopolítico costumam ter como semelhança também essas políticas frágeis, sobretudo no campo da cultura e da memória. E nós conseguimos, no acervo, reunir um panorama extraordinário dessas regiões. São trabalhos incríveis, que ajudam a iluminar um pouco esses tempos tão sombrios”.