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A curadora Carolyn Christoph-Bakargiev. Foto: Andrea Guermani
A curadora Carolyn Christoph-Bakargiev. Foto: Andrea Guermani

A repercussão do anúncio da aposentadoria de Carolyn Christoph-Bakargiev, que há mais de 20 anos, entre idas e vindas, está no Castello di Rivoli, assustou a ela própria. Ela dirige desde 2016 o primeiro museu de arte contemporânea da Itália, prestes a comemorar seus 40 anos, em 2024.

Em sua visão, uma “não notícia” acabou saindo em todos os veículos de arte e jornais importantes. “Creio que isso significa, em um nível simbólico, que muita gente quer dizer não, quer parar, não quer ser escravo de máquinas”, conta Carolyn, em seu escritório no museu, rodeada de livros e pastas, e na companhia de seu cachorro Dr. Jivago, com quem precisa entrar por uma entrada especial, longe do público.

Parar, no entanto, não significa deixar de trabalhar. Ela já tem uma grande mostra sendo preparada para Paris, em 2024, dedicada à Arte Povera, na Bourse de Commerce. Será a primeira exposição que não irá tratar da coleção de François Pinault, no edifício histórico que é mantido pelo magnata francês.

O que Carolyn vai ganhar com a aposentadoria aos 66 anos, que ela comemora em dezembro próximo, é estar livre da burocracia administrativa. “Estou me aposentando de instituições; não vou mais dirigir, participar de conselho, encontrar ministros de cultura, políticos. Estou me aposentando disso tudo e, tenho esperança, de me tornar jovem novamente”, conta, sorrindo.

Nesses mais de 20 anos no Castello di Rivoli – ela entrou em 2002, como curadora-chefe, após dois anos no PS1, de Nova York – os museus em geral passaram por uma intensa transformação. Caminhar pela coleção do próprio museu italiano reflete essas mudanças, deixando de contar uma história da arte norte-americana e eurocentrista, para se abrir a outras narrativas, entre elas a do chamado “sul-global”, termo que Carolyn não gosta muito. Ela prefere usar a expressão “inconformados com o cânone eurocêntrico”. Desse grupo, ela cita o artista sul-africano William Kentridge, o australiano Richard Bell, o norte-americano Jimmie Durham (1940- 2021) e a brasileira Maria Thereza Alves, todos seus amigos e com os quais já trabalhou diversas vezes.

Everydays: The First 5.000 Days, de Mike Winkelmann (Beeple). Inteiramente digital, a obra foi vendida por US$ 69,3 milhões pela casa de leilões Christie’s
Everydays: The First 5.000 Days, de Mike Winkelmann (Beeple). Inteiramente digital, a obra foi vendida por US$ 69,3 milhões pela casa de leilões Christie’s

Enquanto virou politicamente correta a inclusão desses “inconformados” no circuito da arte, muitas vezes essa seleção parece mais uma ação de marketing cultural, já que instituições usam essa estratégia como ação de publicidade. Não é o caso de Rivoli. “Não quero me vangloriar de ter amizade com artistas, mas essa é minha vida, e essas são alianças que construo há muito tempo”, relata. Com isso, não é apenas na coleção que os artistas estão presentes, mas em espaços de poder, como o Comitê Consultivo, no qual, dos sete membros, quatro são artistas, um é físico e os demais, curadores, algo bastante raro no Brasil.

“O museu pertence aos artistas”, defende Carolyn. “Como diretora de museu, esse é o elemento primário. Nossa função é como fazer para um trabalho de arte comunicar ao mundo o que ele significa para o artista. Trata-se de como torná-lo vivo, não inerte, morto”, explica.

Essa abertura para produções além do padrão ocidental teve origem, de certa forma, quando ela organizou a Bienal de Sydney, na Austrália, em 2007 e 2008. Foi no deserto, ao conhecer a produção aborígene com a amiga e curadora aborígene Hetti Perkins, que ela se deu conta de que os objetos por eles produzidos, mesmo que para serem vendidos para turistas, alcançavam resultados para a comunidade, como a construção de um hospital, e que, portanto, tinham um sentido importante. Ao mesmo tempo, ela entendeu ainda que mesmo objetos da cultura ocidental tinham um sentido mágico, como o crucifixo. “Então passei a olhar para a arte europeia, ou italiana, de forma mais antropológica”, resume.
Outro momento importante para a construção de suas alianças foi quando ela defendeu, em 2001, junto com Alana Heiss, então diretora do MoMA-PS1, de Nova York, a realização da mostra The Short Century: Independence and Liberation Movements in Africa, 1945-1994 (O século curto: movimentos de independência e liberação na África, 1945-1994), organizada pelo nigeriano Okwui Envezor, no início de 2002. A mostra foi um projeto para o museu Villa Stuck, em Munique, na Alemanha, e já tinha sido exibida emBerlim, na Casa das Culturas do Mundo.

Medusa – Rachel – Pietà, Bracha L. Ettinger, 2017-2022
Medusa – Rachel – Pietà, Bracha L. Ettinger, 2017-2022

“Foi a primeira mostra fora dos ateliês do Harlem dedicada a artistas africanos em Nova York. Ela realmente mudou o padrão da arte africana nos Estados Unidos, assim como transformou os museus no país”, defende.

Okwui, então seu amigo, foi o curador da Documenta 11, também em 2002, que com suas plataformas de debates em vários locais do mundo criou um novo paradigma para grandes mostras, que deixaram de se restringir apenas a um evento físico, mas funcionar também como um espaço de reflexão. Carolyn cuidou da edição da Documenta dez anos depois, em 2012, e da Bienal de Istambul, em 2015.

O passado do futuro
“Após Sydney, Documenta e Istambul decidi não fazer mais bienais ou grandes mostras internacionais. Eu parei para dar aulas, mas eu quis voltar a trabalhar em museus”, relembra. Ela retorna, então, a Rivoli em 2016. O museu, que teve como primeiro diretor o holandês Rudi Fuchs, também curador da Documenta, em 1982, funciona em um palácio que começou a ser construído no século IX, e chegou a ter a pretensão de ser uma espécie de Versalhes da família Savoy. Mas nunca chegou a ser acabado de fato, tendo sido bastante saqueado durante a invasão de Napoleão Bonaparte, no século XIX. Mesmo assim, é um lugar um tanto inusitado para ser o primeiro museu de arte contemporânea da Itália, especialmente porque artistas da Arte Povera estiveram bastante envolvidos em sua concepção.

“Dirigir um museu é organizar e cuidar de uma coleção. O que as pessoas veem são as exposições temporárias, mas o diretor de um museu constrói o passado de um futuro”, conta. A diferença para mostras do tipo bienal é que esse tipo de exposição, em sua concepção, é para “reagir sobre o aqui e agora”.

Não que isso não ocorra no museu. Neste momento, por exemplo, o Castello di Rivoli apresenta a exposição Artistas em Tempo de Guerra, concebida pela própria Carolyn antes mesmo da pandemia – esta seria a terceira etapa de uma série denominada Expressões, e que acabou coincidindo com a guerra na Ucrânia.

A exposição traz artistas que vivenciaram situações de conflito ao longo dos últimos séculos, seja Goya, na Espanha, como sua famosa série Os desastres da Guerra, do início do século XIX, passando pela fotógrafa Lee Miller, que retratou a liberação de campos de concentração e a própria casa de Hitler, em Munique, assim como Dinh Q Lê, que reúne uma série de desenhos produzidos durante a guerra no Vietnã nos anos 1960.

Essa sintonia com o tempo presente ocorre por conta de um método que Carolyn empresta de outra diretora da Documenta, a francesa Catherine David, responsável pela 10ª edição, em 1997. Para ela, o curador deve trabalhar com “as urgências”. “Enquanto você faz uma exposição você está tentando entender o mundo e trabalhar com artistas que também estão tentando entender o mundo para pessoas que, ao visitarem a exposição, possam tentar entender o mundo”, define a diretora do Castello di Rivoli. Se ela continuasse no museu, em 2024, a urgência seria tratar da questão digital.

“Estou muito interessada nos artistas digitais. Por isso procurei Beeple (o norte-americano Michael Joseph Winkelmann), que é o Andy Warhol de hoje. O que Warhol foi para a sociedade de consumo, Beeple é para a cultura digital, fazendo um crítica desse tempo”, afirma, com sua animação de sempre. Na verdade, ela já possui uma série de vídeos no YouTube com Beeple, em que ela ensina história da arte e ele, cultura digital.

Voltando às tarefas de diretora de museu, lá trata-se de outra temporalidade: “90% do trabalho tem a ver com a coleção, que é o que ninguém fala, mas é a parte mais importante, afinal o acervo é a narrativa de hoje que será contada no futuro.” E aqui, o método ela toma emprestado de sua mãe, uma arqueóloga italiana: “É preciso se colocar em sapatos do amanhã e olhar o hoje com uma perspectiva arqueológica.”

No entanto, com os crescentes cortes de verbas para museus públicos europeus, Carolyn se viu cada vez mais tendo que cuidar de “fundraising” e, dessa fase, ela quer se livrar. “Estar na direção do museu é gastar muito tempo e esforço para conseguir fundos, porque os museus públicos cada vez mais perdem apoio; então, quero poder voltar a dar aula, de vez em quando fazer uma grande exposição, mas, sobretudo, pensar e pensar junto com artistas”, conclui. ✱

 

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