No mundo digital um turbilhão de imagens nos bombardeia a cada fração de segundo e tudo pode se dissipar pela rede com a mesma rapidez. Com o propósito de discutir a memória gráfica dos principais acontecimentos sociopolíticos do Brasil desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, a designer gráfica Didiana Prata lança Calendário Dissidente, realizado por meio do mapeamento da estética das imagens no banco de dados do Instagram.
O projeto mostra a arqueologia das narrativas visuais da memória gráfica brasileira. “A ideia é conseguirmos observar e arquivar essas novas estéticas que vêm da rede”, assinala Didiana, que mostra os resultados parciais da pesquisa de doutorado no curso de pós-graduação em Design da FAU/USP, sob orientação da profa. dra. Giselle Beiguelman e desenvolvida durante sua residência no Centro de Inteligência Artificial do Inova USP. Essas imagens dissidentes, na opinião da designer, trazem vocabulário novo que diz respeito também à manifestação estética do qualquer um. “Isso interessa na medida em que se trabalha com amostragem maior de imagens e acesso às outras narrativas como linguagem visual, divergência e diversidade de produção, não só de artistas designers mas também de cidadãos, de pessoas engajadas e com diversos ativismos”.
O Calendário está em processo e a preocupação é arquivar essa produção cronologicamente. “O primeiro estágio é classificar a partir da temporalidade em que foram publicadas criando uma narrativa visual cronológica, diferente do que ocorre na visualização fragmentada dessas imagens nas páginas dos aplicativos. Daí, olhar para elas e categorizá-las dentro de filtros estéticos, categorias que estou propondo”. Para armazenar milhões de imagens e respectivas legendas, Didiana aprofunda sua pesquisa junto à equipe do Inova USP, usando inteligência artificial e aprendizagem de máquina para treinar os robôs para que façam a classificação de imagens dentro de um critério estético. “Os classificadores de imagens que existem no mercado são todos com viés comercial ou de vigilância e eu não estou interessada nesse perfil, nem nesse tipo de rotulação”.
Essa nova vertente é o uso da inteligência artificial ligada à estética e à produção artística e, para a designer, esse é o ponto. “Nem tudo está no Calendário, porque estamos finalizando a parte das classificações de imagens e aprimorarando o processo”. Didiana vai afinar as imagens e fazer curadoria assistida, como ela diz, com seus amigos robôs nas categorias estéticas relevantes. Devido ao risco de caírem no esquecimento, diante do fluxo de superprodução e veiculação nas redes às quais pertencem, as imagens são catalogadas e arquivadas, a partir da análise de algumas hashtags. O site captura, indexa e publica diariamente três imagens mais curtidas com hashtags #designativista, #desenhospelademocracia, #mariellepresente, #coleraalegria. Marielle, segundo Didiana, é uma hashtag importante pelo número de imagens e pelos vários ativismos contidos não só de cunho político, mas também pela questão do negro no Brasil, racismo e questões de gênero. “A ideia é que as pessoas possam consultar o Calendário para outras questões como jornalismo, sociologia, política, arte.” Considera-se que as hashtags estabelecidas como filtro de busca são representativas das dissidências e das manifestações coletivas frente ao momento atual da nossa história.
Em que afinal diferem as imagens postadas no Instagram e as do Calendário Dissidente? “Na verdade no Instagram você está sujeito a visualizar as imagens das pessoas que você segue, pode até seguir uma hashtag, mas as imagens que vão aparecer são as que o algoritmo selecionou dentro do seu grupo de seguidores”. Didiana lembra o que aconteceu com essa pesquisa no seu Instagram. “Ele falava de uma estética na minha bolha e isso não me interessa. Eu ampliei os dados qualitativos e descobri artistas anônimos no Brasil todo. Essa é a riqueza do trabalho, é você ampliar o vocabulário com uma mostra maior que sem a inteligência artificial eu não teria como fazer.”
No site do Calendário pode-se visualizar trabalhos de profissionais e de cidadãos comuns, com intervenção e memes. “Os memes são incríveis, marcam o imediatismo da cultura visual das redes, feitos a partir de imagens propriadas da grande mídia, normalmente imagens jornalísticas que falam do dia a dia”. Didiana não considera essas imagens as mais adequadas para serem investigadas, uma vez que já são discutidas por pesquisadores da comunicação. Ela se interessa pelas colagens e ilustrações digitais, tipografias e ilustrações vernaculares. Há resgate de coisas da cultura popular, de caligrafia, de ilustrações do cordel que são trazidas para a contemporaneidade.
Essas imagens, segundo a designer, apresentam novos paradigmas para o estudo do design de comunicação da era pós-internet. Por varredura algorítmica, o Calendário rastreia os principais temas relacionados às imagens do dia e oferece ao usuário os filtros temáticos correspondentes.
A segunda fase do projeto apresentará uma curadoria de imagens, selecionadas a partir de seis categorias estéticas preestabelecidas: factuais; ilustração digital; ilustração manual; tipografia digital; tipografia vernacular e apropriação. Esta etapa está prevista para ir ao ar em junho deste ano. Agora é esperar.