Em 2 de setembro de 2018, às 19 horas e 24 minutos, o corpo de bombeiros era acionado para conter um incêndio no Museu Nacional – UFRJ. Dois anos depois, neste mesmo dia e horário, uma projeção de grandes dimensões ocupa o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio), dando vida à uma obra em memória do incêndio: Noite de Abertura, de Thiago Rocha Pitta.
Composta por uma escultura e um vídeo em projeção, a criação dá início ao Programa Intervenções, que ocupará as áreas externas do MAM Rio com manifestações artísticas contemporâneas com curadoria de Fernanda Lopes e Fernando Cocchiarale.
Noite de abertura
A obra de Pitta consiste na junção de duas linguagens artísticas. No vão do museu, uma escultura pode ser vista por quem passa pela região. A peça é um fogueira pronta para ser acesa e, em seu topo, uma porta de madeira espera para ser incendiada. À noite, o trabalho é complementada por um filme projetado nas paredes do MAM. Intitulado The Clopen Door, ele traz uma fogueira como a da escultura, porém essa queima continuamente, até a total destruição da porta. Graças à configuração arquitetônica do local, a imagem reflete no piso de granito preto e invade as áreas interna e externa do museu através das paredes de vidro, transformando o espaço em uma grande fogueira imagética.
A escultura ficará exposta continuamente e o vídeo será exibido todas as noites, com o museu fechado. “O nome da obra, Noite de abertura, já é uma ironia, porque o museu não está aberto na hora em que ela acontece”, explica Thiago Rocha Pitta.
Intervenções
Com esta obra, o artista questiona a relação entre o interno e o externo, o aberto e o fechado, e relaciona-se diretamente com o princípio que guia Fernanda Lopes e Fernando Cocchiarale para o Programa Intervenções. Os curadores buscam estimular artistas contemporâneos na criação de projetos inéditos para a área externa do MAM Rio – desde o vão livre, à empena, passando pelos jardins e qualquer área que fuja de uma sala de exposição convencional.
“O museu sempre esteve nesse limite entre o dentro e o fora, tensionando essa relação. A própria arquitetura já faz muito isso, com as paredes de vidro, o vão livre etc. Além disso, sempre teve exposições inéditas, que eram propostas no papel e o museu apostava em realizá-las. Acho que esse programa de intervenção recupera um pouco a identidade que o MAM Rio construiu nos anos 60 e 70, de um museu experimental que age em parceria com o artista”, afirma Fernanda Lopes. Atualmente, a instituição desenvolve essa parceria com Carmela Gross, que participará do programa ainda neste ano.
A não oposição entre dentro e fora
Com Thiago Rocha Pitta não foi diferente. A obra só pôde ser vista em sua completude após ser montada no museu no dia 31 de agosto. “Foi muito interessante vermos o trabalho acontecer pela primeira vez fora do papel, ele ganha outras dimensões. Tiveram ecos de imagem por conta dessa película de vidro que separa o dentro e o fora do museu, que tornaram a obra ainda mais interessante”, compartilha a curadora.
Em Noite de Abertura, o artista parte da noção antropológica de clopen (junção das palavras closed e open em inglês, aberto e fechado), no qual os termos aberto e fechado não são vistos como opostos, mas sim como complementares. Com as paredes e a porta de vidro, a arquitetura do MAM Rio colabora para essa ideia, como explica Pitta: “A escultura e a projeção estão alinhadas com a porta do MAM, que virou uma espécie de espelho. A porta do MAM está fechada, mas também está aberta – porque é transparente”.
Mas o conceito se dá em vários níveis da obra, para além da sua localização. “Quando colocamos uma porta na fogueira, você já projeta mentalmente a parede em volta, e quando a porta está queimando, ela está abrindo. Mas depois que ela se queima totalmente, o portal se fecha”, diz Pita.
Entre fogos
É a partir desses conceitos e símbolos que Thiago constrói a ideia de passagem e transformação, e é nesse ponto também que traça um paralelo entre o incêndio imagético de The Clopen Door e o incêndio real do Museu Nacional do Rio de Janeiro. “Aquilo [que incendiou o museu] é um fogo destruidor. O meu fogo – que utilizo nos trabalhos – é um fogo culinário. Não é um fogo que mata, que destrói; é um fogo que transforma”, conta.
O artista tinha uma relação pessoal com o espaço incendiado. Morador de Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, era frequentador do Museu Nacional – UFRJ e chegou a estudar nele durante um semestre. Quando a tragédia ocorreu, percebeu que precisava trabalhar em algo que mantivesse essa história viva.
O trabalho com a fogueira já existia, começou a queimar portas em 2017. Porém, foi em 2020 que filmou a intervenção, criando a peça fílmica. “A obra não foi pensada para o MAM, mas a forma como ela se configura para o museu traz uma reverberação muito específica”, complementa. Dessa forma, o artista pretende retomar não só o incêndio do Museu Nacional, mas também o do próprio MAM Rio de 1978 e os diversos que o precederam e seguiram. Para Fernanda Lopes, o trabalho adquire um caráter de memória e uma dimensão política, de “recuperar essa ideia e entender os incêndios literais e metafóricos que a gente vem sofrendo no Brasil em várias áreas, inclusive na cultura”.
“Esse fogo já vem sendo acesso a muito tempo – vamos dizer, desde que os portugueses chegaram aqui. No entanto, nos últimos anos, é notável uma aceleração desse fogo destruidor, colonial e genocida. Acho que o incêndio no museu foi um emblema do que está acontecendo hoje. Aquilo ali foi um oráculo horrível do que a gente está vivendo hoje”, explica Pitta, ao que Lopes complementa: “Talvez essa homenagem tente fazer com que a gente não esqueça o que aconteceu, por que aconteceu, e como não deixar acontecer de novo”.