Por Benjamin Seroussi
Como rotular a Vila Itororó? Como Casa de Cultura? Teatro? Museu? Sabemos das limitações das políticas públicas que precisam encaixar em rubricas burocráticas uma realidade singular que foge à regra geral. Porém, entre uma gestão e uma outra, houve um contínuo esforço da Secretária Municipal da Cultura (SMC) para adequar os dois lados da equação.
É impossível olhar para a complexa história da Vila Itotoró sem levar em consideração que o local sempre foi um lugar de moradia (popular e burguês) e de lazer (tendo uma das primeiras piscinas da cidade). É lamentável que o reconhecimento da importância da Vila como patrimônio passou pela retirada do que faz dela ser justamente um patrimônio – os seus moradores. É como se o desejo (de preservar) matasse o seu objeto (a Vila). Não por acaso, a Vila atravessou os tempos justamente por ter ficado um tanto à margem da especulação imobiliária – o relativo abandono foi seu maior fator de preservação. Hoje, estando sob os holofotes, é preciso ter cuidado para não destruí-la de vez.
O futuro não existe
Quando vai ficar pronto? O que vai ser? São as primeiras perguntas que os visitantes fizeram ao adentrar o canteiro de restauro da centenária Vila Itororó quando abriu seus portões ao público em 2015, já esvaziada dos seus moradores. É curioso como a crença no futuro persiste apesar de vivermos em uma cidade repleta de canteiros abandonados, de políticas públicas descontinuadas e de promessas não cumpridas… E quando São Paulo vai ficar pronta? O poder público se sente na obrigação de propor respostas como se um plano irrealizável reconfortasse mais do que uma mirada realista sobre as nossas capacidades de agir no presente.
É curioso como a crença no futuro persiste apesar de vivermos em uma cidade repleta de canteiros abandonados, de políticas públicas descontinuadas e de promessas não cumpridas… E quando São Paulo vai ficar pronta?
A espessura do presente
Tentar responder a uma pergunta errada é a garantia de que nunca encontraremos a resposta certa. Por isso, o projeto Vila Itororó Canteiro Aberto evitou respostas superficiais como “residência artística”, “centro cultural público”, “museu da história da cidade”, para elaborar novas perguntas: o que pode ser agora? Como sua história e as necessidades atuais da cidade informam seu potencial? Como ativá-lo? O que é público? O que é cultura? – e assim inventar o que o arquiteto Yona Friedman chama de “utopias realizáveis”, um exercício radical de imaginação, porém, dentro de uma possiblidade de atuação que visa dar espessura ao presente.
O centro cultural temporário
O galpão anexo à Vila virou um experimento, em escala real, do que poderia ser a Vila uma vez renovada… ou melhor, habitada. Muitas parcerias foram realizadas para fortalecer o projeto para além das gestões políticas. A arquitetura temporária do coletivo franco-alemão Constructlab criou as bases para uma escuta ativa das demandas do bairro. Essas não surgiram por meio de consultas públicas mas sim dos usos da cozinha, da arquibancada móvel, dos espelhos, dos banheiros públicos, dos armários para pessoas em situação de rua, da marcenaria aberta e de outros dispositivos que vieram substituir os cafés, lojas de design e outros serviços que hoje parecem mais importantes que a própria utilidade pública dos espaços de cultura.
Habitar a cultura
Paralelamente, houve uma abertura da noção de cultura – já que, legalmente, o espaço tem de ser usado para fins culturais. Mas se a cultura extrapola as práticas artísticas, por que não usar o espaço de outras formas? Habitar não é cultura? Cultivar não é cultura? Alimentar-se não é cultura? Práticas não previstas pelas limitações sociais e cognitivas dos curadores do projeto não teriam espaço nos centros culturais? Definindo acordos básicos com o público em construção, surgiram o que chamamos de “usos espontâneos”: esgrima, ensaio de circo, reuniões de ex-moradores e outras práticas realizadas pelos frequentadores, sem outras mediações curatoriais.
Ensaiando outras políticas públicas
O projeto Vila Itororó Canteiro Aberto terminou em 2020 com a entrega, pelo Instituto Pedra, de algumas casas reformadas para a SMC que já tinha assumido a gestão das atividades do canteiro em 2018. Desde então, é importante observar o processo de normalização (ou domesticação) em curso – os “usos espontâneos” ficando menos visíveis do que as oficinas e os espetáculos; a comunicação visual ganhando caráter oficial; e o vocabulário ficando acrítico – falando-se em “economia criativa”, “ocupação artística” ou “museu”. Mas a Vila segue viva dentro do leque aberto pelo canteiro! Reconhecer essas limitações ajuda a apontar para os desafios atuais: como o poder público pode manter a vida comunitária que existe ali sem cerceá-la? Que papel os frequentadores podem ter na gestão do espaço? Como incluir moradia no programa de uso? Como seguir a reforma sem travar o funcionamento da Vila?
Para concluir, eu gostaria, por um lado, de pensar, junto aos curadores e gestores, sobre a importância de seguir almejando o melhor dos melhores para seus projetos mas também de ter a capacidade de antecipar o melhor dos piores cenários possíveis, pois nossa capacidade de controle da realidade é limitada. Por isso, apesar dos problemas apontados, celebro que a Vila mantém um público diverso, que a clínica de psicanálise siga funcionando e que as obras de arte, comissionadas para estruturar o projeto, continuam ali: o mobiliário de Constructlab (infelizmente repintado sem conversa com seus criadores); os murais de Monica Nador; o jardim de atração de borboleta de Carla Zaccagnini (cuja parte sonora não é bem sinalizada); a casa reformada pelo Raumlabor (mas sem contar mais com apoio do Goethe Institut); e os excertos videos de Graziela Kunsch on-line.
Por outro lado, à SMC, chamo a atenção para o fato, que, no cenário atual, a Vila continua uma ocasião única para criar políticas intersetoriais. Se, por meio do Fablab, há uma parceria da SMC com a Secretária de Inovação e Tecnologia, por que não uma com a Secretária de Habitação? Em uma situação de escassez de recursos, a Vila aponta para um modelo econômico onde o poder público pode apoiar as iniciativas coletivas que ali surgiram, garantindo suas coabitações livres apenas, sem apagar suas singularidades e disponibilizando um espaço comum para desenvolverem suas atividades. Em uma cidade que tenta apagar suas feridas e silenciar suas vozes minoritárias, a Vila, medalhão de um colar que já se foi (parafraseando Flavio Império, que morava no quarteirão), pode funcionar como memória viva das tantas formas de viver na capital da vertigem.
Atuei como curador do projeto Vila Itororó Canteiro Aberto. Compartilho a autoria junto à equipe com a qual trabalhei diretamente – Fabio Zuker (curador associado), Graziela Kunsch (formadora de público), Helena Ramos (gerente de projeto), Francesca Tedeschi (coordenadora do Goethe na Vila) – e com toda a equipe do Instituto Pedra, liderada pelo Luiz Fernando de Almeida, que me convidou em 2014 para pensar como abrir esse canteiro.
Para saber mais sobre o projeto Vila Itororó Canteiro Aberto e sobre a história da Vila Itororó, convido a navegar pelo site vilaitororo.org.br onde é possível encontrar arquivos fotográficos, livros, videos, obras e registros de todas as atividades realizadas entre 2015 e 2018.