A vista aérea proporcionada pelo belvedere do monte sobre o lago Iseo transforma a instalação The Floating Piers naquela típica pincelada final que imprime num quadro a genialidade de um artista. O artista em questão é Christo, americano nascido na Bulgária, de onde fugiu do regime comunista em 1958. Hoje com 81 anos de idade, ele ficou conhecido nos anos 1970 por instalações monumentais em tecido, que realizava em parceria com a esposa, Jeanne-Claude (falecida em 2009), embora ela só tenha começado a ser creditada como autora a partir de 1994. Omitir a parceria foi uma decisão conjunta do casal para evitar o preconceito contra artistas mulheres no mundo da arte. Juntos eles cobriram, por exemplo, o Reichstag, o parlamento alemão, em Berlim, em 1995, assim como a ponte Neuf, de Paris, dez anos antes, e a costa de Little Bay, nos arredores de Sidney, em 1969.
The Floating Piers criou uma ponte entre o lago Iseo – localizado no norte da Itália, aos pés dos Alpes – e o mundo. Com três quilômetros de extensão de um lado e mais um e meio do outro, a passarela gigante conectou os povoados de Sulzano, na terra firme, à Montisola, na ilha à frente, unindo em menos de dois anos o que a natureza levou milênios para separar. Em cartaz por apenas duas semanas, a obra transformou o local em destino de viagem para quase um milhão de pessoas de todo o mundo, tornando o Iseu, pelo menos temporariamente, capital mundial da land art ou environmental art. Christo afirma que seu “trabalho é composto por muitos e diferentes elementos. A minha arte envolve arquitetura, paisagismo, urbanismo, pintura e escultura”.
O nome bíblico do artista, nascido Christo Javacheff, remete à óbvia metáfora do episódio mitológico do evangelho (em que Cristo, o filho de Deus, caminha sobre a água), evocando arquétipos e atraindo um público distante da arte contemporânea, mas próximo da fé religiosa. Para além dessas representações, a ponte flutuante funciona como passarela que conduz o público a uma experiência real com os elementos da natureza – pássaros, homens e peixes compartilham o mesmo meio ambiente. Sem corrimão ou balaustradas, o caminhante se equilibra sozinho, sente a passagem das ondas sob os pés descalços, de preferência – com a segurança garantida à distância por 25 botes, com mergulhadores prontos para qualquer emergência. “Este trabalho tem uma dimensão aberta. O visitante tem que caminhar dois quilômetros. É um projeto físico, real. Não é uma realidade virtual. Nada de ventos ou ondas ou fotografias virtuais, tudo nele é real. Sobre a passarela, o prazer é real, o medo é real”, afirma Christo.
Mas mais do que a ligação física, o artista criou uma ponte flutuante entre o passado e o presente, entre o antes e o depois, pois a obra deve continuar ligando gerações a partir da memória de quem a viu e viveu pessoalmente, pelos 16 dias de sua existência. A instalação não é para sempre mas o seu legado desmaterializado, visual e artístico, sim. De matiz quase divina e onírica, a obra toca o inconsciente coletivo dos povos.
A realidade da produção do trabalho: Burocracia e financiamento
The Floating Piers é o resultado final de dois projetos naufragados na burocracia pública, ao longo de mais de quatro décadas. Em 1970, Christo e Jeanne-Claude tentaram sem sucesso realizar 2000 Metres Wrapped Inflated Pier, no rio da Prata, em Buenos Aires. O projeto foi repensado como The Odaiba Project, para o Odaiba Park, na baía de Tóquio, 26 anos depois, e novamente não conseguiu autorização. Christo revela que em quase 50 anos de trabalho a burocracia tem sido o maior desafio: “Dos 37 projetos para os quais pedimos permissão, temos apenas 22 projetos realizados. O The Floating Piers é o projeto número 37 e tínhamos perdido o interesse, pois achávamos que não conseguiríamos realizá-lo. “Mas, como dizia Jeanne-Claude, alguns projetos ficam no coração e na mente e sempre estão ali”, afirma o artista. A morte da companheira, em 2009, não cancelou o sonho do casal.
A obra efêmera se concretizaria em 18 de junho de 2016, com a abertura ao público, e duraria até o dia 3 de julho, à meia-noite. Dali em diante, começaria o desmantelamento de toda a estrutura, composta de correntes e fundações submarinas, 220 mil cubos de polietileno e 70 mil metros quadrados de tecido amarelo furtacor. Tudo vai ser desmontado e reciclado. Os dois anos de trabalho, um exército de mais de 500 pessoas e testes em lagos na Alemanha e no mar Negro, com milhares de horas e cálculos de engenheiros envolvidos na realização do projeto, vão se tornar memória. Depois disso, será possível conferir a exposição Christo e Jeanne-Claude, Water Projects em cartaz no museu Santa Giulia, em Brescia, até 18 de setembro de 2016. Lá estão expostas as amostras dos materiais usados no lago de Iseo, e 150 quadros, fotografias, maquetes e vídeos de obras realizadas em diferentes continentes e oceanos, mares e lagos podem ser admirados, como prévias desta obra-prima chamada The Floating Piers.
As obras de grande escala têm também grande custo e Christo ganhou notoriedade pela forma alternativa de financiamento que desenvolveu. O custo total dos projetos – 15 milhões de euros no caso de The Floating Piers – vai sendo amortizado a partir das vendas de quadros que retratam a visão da obra. Os desenhos preparatórios, limitados e exclusivos, que antecedem a execução da obra em si, são dados como garantia aos financiadores. Esse sistema capitalista inovador no campo da arte é reconhecido como um caso de estudo pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Depois da concretização da obra, Christo não a retrata novamente. Dessa forma, o artista cria um círculo virtuoso, no qual todos saem ganhando: os investidores, que lucram com a valorização dos quadros; as cidades, com a visita de milhares de turistas; o público, com a emoção que experimenta; e o artista, com a concretização do projeto.