O que ocorreu no dia 8 de janeiro deste ano na Praça dos Três Poderes, em Brasília – a ação em si e seus performers – já produziu várias reflexões, e estou certo de que muitas outras ainda serão realizadas. Afinal, aquele evento pode ser interpretado e adjetivado por vários pontos de vista que, mesmo somados, dificilmente darão a verdadeira dimensão do ocorrido.
O que se verificou no Palácio do Planalto, no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal naquele dia pode (e deve) ser analisado em seu viés social e político como uma ação estratégica para criar condições para um novo golpe antidemocrático contra a sociedade brasileira, felizmente malogrado. Poder ser também um objeto de análises sociológicas e antropológicas, que busquem entender como e por que grupos aparentemente pacíficos da classe média brasileira – fundamentalmente “brancos” –, invadiram os Palácios da democracia do país como vândalos e como terroristas. [1]
Mas eu gostaria de atentar para aquele ocorrido por outra perspectiva. Gostaria de entendê-lo, e a seus atores, como um tipo de ópera bufa, uma paródia canhestra e cínica do que aconteceu em Washington, Estados Unidos, no dia 6 de janeiro de 2021, durante a invasão do Capitólio.
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Parte da classe média “branca” brasileira insiste em não se enxergar como integrante de uma sociedade definida por uma série de características e contradições, preferindo viver como se constituísse um grupo de exilados provenientes de outras sociedades e culturas. Vive no interior de Santa Catarina como se fosse alemão; em São Paulo, como se fosse italiano; em Goiás, como se vivesse no Texas. Mas o paraíso desse grupo tende a ser mesmo os Estados Unidos, a Flórida, Miami e Orlando – para seus integrantes, uma espécie de Brasil que “deu certo”.
Por essa necessidade de viver aqui como se lá estivesse é que essa classe acaba criando correspondentes locais ao que ela entende como sendo protótipos internacionais. Assim, Ismael Nery nunca é Ismael Nery. Para esse pessoal, Nery será sempre o “nosso” Marc Chagall; Portinari o “nosso” Picasso, Fabio Assunção, “nosso” Brad Pitt. A Avenida Paulista como a “nossa” Quinta Avenida, e, assim, até culminar na crença de que Jair Bolsonaro seria o “nosso” Donald Trump.
É neste sentido que o dia 8 de janeiro de 2023 foi o “nosso” 6 de janeiro de 2021; é neste sentido que a invasão dos palácios da Praça dos Três Poderes em Brasília, foi a “nossa” invasão do Capitólio.
Guardando a contundência de como a dimensão paródica daquele ato de 8 de janeiro de 2023 e entendendo tal dimensão como um drama, talvez possamos perceber que a conhecida frase proferida por Karl Marx pode assumir outros sentidos: se, para o filósofo alemão, a história acontece como tragédia e se repete como farsa, aqui na periferia, a farsa – e sua dimensão risível – é sempre trágica também, pois, afinal, a cópia – quando acompanhada da tentativa de apagamento simbólico do tempo e da história, (como veremos) – pode ser também profundamente dramática.
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Antes de entrar nas considerações sobre determinadas imagens da invasão propagadas pelas mídias, destaco alguns fatos ocorridos em janeiro de 2023 em Brasília para que não nos esqueçamos – e que fique bem gravado em nossas mentes – que aquilo tudo foi, em grande medida, um arremedo do ocorrido em Washington em 2021:
1 – O Capitólio – sede do Congresso norte-americano – foi concebido ainda no século 18 como um complexo de edifícios que, se por um lado faz referência a um passado greco-romano, ele se comporta como uma fortaleza, um bunker branco e inexpugnável. Já os palácios da Praça dos Três Poderes, criados no final dos anos 1950, embora tenham tido a arquitetura grega clássica como protótipo, comportam-se, antes de tudo, como locais vulneráveis, pensados a partir dos conceitos de acolhimento, integração e passagem.
2 – O Capitólio foi invadido e os palácios da Praça dos Três Poderes também. Porém, se o primeiro sofreu a invasão durante um dia de semana (sexta-feira), para tentar impedir a diplomação de John Biden (portanto, antes de ele assumir a presidência), os palácios brasileiros foram invadidos em um domingo à tarde, quando estavam vazios, alguns dias após Lula ter assumido a presidência.
3 – Donald Trump, antes da invasão do Capitólio, conclamou pública e pessoalmente seus correligionários a se dirigirem para aquela casa do Congresso, para rechaçar e impedir o ato que estava prestes a ocorrer. Jair Bolsonaro, por sua vez, sai do Brasil antes do término do seu mandato, parecendo ter delegado a seus apaniguados e sectários mais próximos o comando da operação do dia 8 de janeiro.
4 – Se após o pronunciamento de Donald Trump, seus partidários se dirigiram por livre e espontânea vontade rumo ao Capitólio, aqueles de Jair Bolsonaro foram conduzidos até a Esplanada dos Ministérios pela polícia local.
Assim, o que ocorreu em Washington tinha uma dimensão dramática, em grande parte orquestrada no calor da hora e da circunstância de um momento determinado da história norte-americana. Já o que ocorreu em Brasília, dois anos depois, foi um arremedo orquestrado para que o já ex-presidente Bolsonaro se tornasse o “nosso” Trump, um Trump de segunda ordem, é claro, mas tornado herói, o salvador da pátria.
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Uma figura que chamou a atenção durante a invasão do Capitólio foi um sujeito fantasiado de viking, pintado com as cores e as estrelas da bandeira norte-americana, como se estivesse pronto para a guerra. Por mais patético que aquele sujeito parecesse, algo em sua atitude precisa ser levado em consideração: fantasiado de viking, ele invocava – apenas para alguns norte-americanos, é claro – uma ascendência norte-europeia, um passado com um pé na origem etnográfica de alguns dos habitantes daquele país.
Pois nós também tivemos o “nosso” viking, surgido nas comemorações do 7 de setembro de 2021 em São Paulo, oito meses após o aparecimento do viking “original”, em Washington. Como uma espécie de prólogo do que ocorreria dois anos depois – ou como uma espécie de “abre-alas” de uma escola de samba que deu ruim –, nas comemorações bolsonaristas daquele dia 7 de setembro, o “nosso” viking refletia como um espelho distorcido o protótipo “deles”.
Porém, não podendo ser um viking, nem verdadeiro, e nem fake, (como o norte-americano), o viking canarinho optou por se transformar em um falso indígena. Um indígena com direito a pintura corporal verde e amarela, segurando uma placa com o nome do ex-deputado federal Daniel Silveira [2] e – pasmem! – um cocar branco, verde e amarelo nos moldes dos indígenas… apache! Sim dos apaches, aqueles dos bangue-bangues do cinema norte-americano.
Essa figura bizarra, o “nosso” viking – um falso indígena de pantomima –, ao encenar aquele episódio grotesco, simbolicamente anunciava o que viria a ocorrer na capital do país dois anos depois: o simulacro tupiniquim, a “nossa” invasão do Capitólio.
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É certo que o homem que destruiu o relógio do século XVII que D. João VI trouxe para o Brasil em 1808, realizou essa ação da mesma maneira que destruiu o móvel que sustentava a peça, a mesa e a cadeira que estavam ali por perto. No enredo de destruição geral que parecia governá-lo, nem o caráter precioso do relógio, tão raro, o fez parar ou o incentivou a destruí-lo especificamente. Não: ele acabava com tudo o que lhe aparecia à frente de forma “democrática”, nada parecia salvar-se de sua fúria.
No entanto, parece que existia naquele sujeito um vislumbre de consciência de que, de fato, aquele relógio não era – ou não deveria ser –, um objeto qualquer. E talvez tenha sido essa percepção que o levou a querer destruir a câmera de vigilância.
De qualquer maneira, ao arremessar o relógio de D. João VI ao chão, aquele homem buscou parar o tempo, transformando aquela invasão numa quebra, numa espécie de hiato.
Se os invasores do Capitólio visavam impedir a diplomação de Biden, conquistando de novo o poder para seguir em frente, os “nossos” invasores tinham outra meta. O interesse ali não era dar continuidade ao processo histórico, invertendo seu rumo (como os invasores “deles”), o propósito era detê-lo. Era instituir um final, um grau zero para que, na sequência, a elite reacionária tomasse conta do país. Daí a importância simbólica do relógio que pertencera a D. João 6º.
Daí também a importância simbólica da destruição das peças da galeria de imagens dos presidentes e da presidenta que ornava uma área do Palácio do Planalto. Arruinar aquelas imagens complementava a alegoria em que se transformou aquela invasão: deter o tempo, mas, igualmente, romper e destruir a história, o passado brasileiro – sempre o maior desejo bolsonarista.
A questão não era destruir a imagem de todos os ex-presidentes e da presidenta, a questão era retirar, dessa espécie de cronologia iconográfica, a imagem do “mito”. Uma iconoclastia seletiva. A imagem do sujeito meio atônito, meio parvo, segurando a fotografia de Jair Bolsonaro em frente às outras imagens, destruídas, diz muito sobre o que desejava aquela turba quando invadiu os palácios de Brasília.
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Não me interessa expressar aqui meu lamento pelo vandalismo cometido contra as obras de Emiliano Di Cavalcanti e outros artistas tão significativos. Não me interessa porque não consegui perceber, nesses atos de ataque às obras de arte, nenhuma diferença com que os arruaceiros e arruaceiras do 8 de janeiro destruíram cadeiras, vitrines e outros equipamentos. Parece não ter havido, entre eles, a capacidade de distinguir um bem precioso e raro de outro mais trivial. O que parece ter imperado ali foi a fúria destrutiva, preservando apenas a imagem do “mito”.
Se os “nossos” vândalos destruíram objetos de arte e objetos comezinhos, se defecaram e urinaram nos palácios da democracia brasileira, os vândalos “deles” foram menos destruidores dos símbolos e, ao que se sabe, nem um pouco escatológicos. Não se trata aqui, é claro, de estabelecer uma hierarquia, afirmando que os manifestantes “deles” foram mais civilizados do que os nossos. Trata-se apenas de chamar a atenção para o fato de que a farsa pode ser ainda mais nefasta e dramática, quando tentam repetir (e calar) a história. ✱