Quando no início de fevereiro passado, funcionários do Museu Nacional receberam Leandro Grass, que acabava de ser empossado presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), havia uma tensão no ar, como relata o jornalista Bernardo Esteves na edição de março da revista Piauí. Desde o incêndio que destruiu 85% do acervo da instituição, o Iphan mais atrapalhava a reconstrução do Palácio São Cristóvão, sendo que seu então presidente, o monarquista Olav Antonio Schrader, chegou a propor que o local se tornasse um centro dedicado à memória da família imperial.
Pois na reunião com Grass, o diretor do Museu Nacional, Alexander Kellner, renovou o convite para que o Iphan integrasse o comitê institucional que acompanha a renovação da instituição e, dessa vez, a resposta foi imediata. “Onde assino”, perguntou logo Grass.
Urgência, de certa forma, tem sido o ritmo dos profissionais da cultura no Brasil, em busca de recuperar o tempo perdido nos últimos seis anos, desde que ocorreu o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. Não dá para esquecer que o Ministério da Cultura chegou a ser extinto por Michel Temer, mas a pressão do setor fez o MinC continuar. Mesmo assim, desde então, seu orçamento foi sendo reduzido, até que na gestão seguinte o ministério fosse extinto de vez.
Segundo dados compilados no Relatório do Gabinete de Transição Governamental, divulgado em dezembro passado, “desde 2016, houve uma perda de 85% no orçamento da administração direta e de 38% no da administração indireta” da Cultura. O documento aponta ainda que “o Fundo Nacional de Cultura (FNC), principal mecanismo de financiamento governamental do setor, teve seu orçamento reduzido em 91%”. O corte foi tão acentuado que a maior parte do que restou foi canalizada para manutenção, tornando inviável qualquer atividade finalística.
Com tudo isso, sintetiza o relatório, “a perda do setor cultural estimada para biênio 2020-2021 foi de R$ 69 bilhões”. Além do fim de políticas públicas consistentes, a pandemia em muito ajudou a arrasar o setor. Ainda segundo o documento, “as estimativas de participação do setor cultural na economia brasileira, em 2019, variavam de 1,2% a 2,7% do PIB, sendo que o conjunto de ocupados no setor cultural representava 5,8% do total (5,5 milhões de pessoas), atuando em mais de 300 mil empresas”. Com a pandemia, o faturamento do setor se aproximou de zero, já que as únicas atividades que continuaram faturando foram as relacionadas a serviços digitais, como streaming de vídeo e música.
A terra arrasada só conseguiu ser evitada de fato graças à aprovação e implementação das Lei Aldir Blanc 1 e da Lei Paulo Gustavo, que, juntas, destinaram R$ 6,8 bilhões para o setor cultural, a partir de um esforço com secretários de cultura, parlamentares e agentes culturais.
Por tudo isso, o retorno do Ministério da Cultura, sob a administração da cantora Margareth Menezes, primeira mulher negra com essa função, vem sendo marcado pela realocação de recursos por um lado, e a escolha de profissionais com atuação reconhecida na área.
No próprio MinC, a presença do cearense Henilton Menezes, como Secretário de Economia Criativa e Fomento Cultural, é um dos ótimos exemplos. Ele é um dos maiores especialistas de políticas de fomento no país, tendo já ocupado função no setor, entre 2010 e 2013, além de ter publicado A Lei Rouanet – Muito além dos (F)atos.
Outra das secretarias do MinC que também é ocupada por um cearense é a dedicada à Formação, Livro e Leitura, com Fabiano Piúba. Ele também já havia ocupado essa função no governo Dilma Rousseff, e, nos últimos anos, era o Secretário de Cultura do Ceará. Foi lá, durante a inauguração da Pinacoteca, no fim do ano passado, quando ainda não havia sido indicado, que ele previu à arte!brasileiros que o período de reconstrução não será fácil. “Vamos precisar de pelo menos dois anos para retomar de fato as políticas necessárias”, contou.
Já para ocupar o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), até então ocupado pelo colecionador Pedro Mastrobuono, nada afeito a funções públicas, foi escolhida a funcionária de carreira no órgão Fernanda Castro, que constava de uma lista de sugestões do ICOM, o Conselho Internacional de Museus, o que aponta o respaldo do setor.
De fato, é conhecido que a gestão anterior se dedicou a nomear gestores que estavam mais voltados para a destruição de políticas culturais e dos órgãos que gerenciavam, sendo um dos casos mais exemplares o da Fundação Cultural Palmares, que chegou a excluir 27 pessoas de uma lista de personalidades negras, como Milton Nascimento, Elza Soares e Gilberto Gil. Trata-se de um verdadeiro escárnio de uma instituição voltada a combater o racismo e valorizar a produção negra.
Agora, o militante negro, advogado e presidente do bloco afro Olodum, João Jorge Rodrigues, assumiu como novo presidente da Fundação Palmares, na missão de retomar o órgão à sua função original.
Na posse de cada um dessas figuras, houve intenso prestígio do governo, como ocorreu na investidura de Maria Marighella na Fundação Nacional das Artes (Funarte), que tem sede no Rio, e foi criada em 1975, dez anos antes do próprio Ministério da Cultura.
Vereadora licenciada em Salvador, artista, neta do deputado Carlos Marighella (1911-1969), assinado por agentes do Dops em uma emboscada, Maria recebeu em sua posse, no início de março, a primeira-dama Janja, além de vários deputados federais, lotando a Sala Cecília Meireles por duas horas. Sua gestão será marcada por um colegiado de ampla representatividade, que inclui do coreógrafo e ex-bailarino do Grupo Corpo Rui Moreira, na direção de artes cênicas, à curadora indígena Sandra Benites, na direção de artes virtuais. A curadora participou, em outubro do ano passado, do VII Seminário Internacional: Cultura, Democracia e Reparação, uma parceria entre a arte!brasileiros e o Sesc. E, após toda polêmica que envolveu Sandra na curadoria do Museu de Arte de São Paulo (Masp), sua indicação tem um que de reparação.
Foi na posse de Maria Marighella, que Margareth Menezes relembrou da perseguição nos últimos e do papel central na nova gestão: “Por que o medo da cultura? Porque a cultura é ferramenta de transformação, de emancipação, de qualificação, além de ser um vetor econômico, de que podemos tirar melhor proveito”. Como um mantra, por várias vezes ela ainda repetiu: “O MinC voltou”. ✱