O Conselho Internacional de Museus (ICOM) divulgou em fevereiro a Red List Brasil, um documento que elenca as tipologias de bens culturais do país mais suscetíveis à comercialização ilegal. Criada em parceria com especialistas brasileiros, a Lista Vermelha traz exemplos de fósseis, arte sacra, mapas, livros e peças etnográficas e arqueológicas sob ameaça de tráfico internacional. O lançamento aconteceu no Museu da Língua Portuguesa, com a presença de Emma Nardi, presidente global do ICOM; da ministra da Cultura, Margareth Menezes, e de Renata Motta, presidente do ICOM Brasil e diretora-executiva do museu paulistano, entre outros.
As Red Lists são publicadas desde 2000 pelo ICOM. Hoje, 57 países estão cobertos pelos 20 documentos editados pela instituição. Alguns deles foram criados em caráter de emergência, como é o caso da recém-lançada lista que contempla objetos em risco da Ucrânia, país em guerra contra a Rússia. Roberta Saraiva, diretora do ICOM Brasil, destaca que, segundo levantamento feito pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), de um total 1.974 objetos brasileiros desaparecidos, apenas 48 foram recuperados. Ainda segundo Roberta, a Interpol (The International Criminal Police Organization) aponta o Brasil como o 26º país com maior número de bens traficados no mundo.
“Desde os anos 1940, o Brasil tem uma legislação de proteção ao patrimônio robusta. Mas é um país com dimensões continentais e fronteiras muito porosas. Portanto, é sempre um grande desafio exercer o controle da saída desses objetos do território nacional”, avalia Roberta. “Um documento como a Red List é muito estruturante porque, além de seu uso prático, junto à Receita Federal e Polícia Federal, por exemplo, ele articula diferentes instâncias governamentais, especialistas na área do país, como o Iphan, o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e o MinC”.
A Red List Brasil, ressalte-se, não mostra objetos já comercializados ilegalmente. Mas aponta as tipologias mais em risco, por meio de fotografias e identificações fornecidas pela Fundação Biblioteca Nacional (FBN), pelo Iphan (MG e RJ), pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE), pelo Museu de Ciências da Terra (MCT), pelas universidades Federal e do estado do Rio de Janeiro (UFRJ e UERJ), pelo Museu Nacional (MN) e o Museu Regional Casa dos Ottoni (MRCO). A arte!brasileiros conversou também com Sophie Delepierre, coordenadora do Departamento de Patrimônio do ICOM. Leia a seguir:
arte!✱ – O que motivou a criação da Red List Brasil?
Sophie Delepierre – Às vezes, há um equívoco de que o tráfico ilícito é apenas uma preocupação para regiões em crise e, embora seja verdade que o ICOM preparou Listas Vermelhas de emergência para países em situações de desastre, a comercialização ilegal de bens culturais afeta todos os países, e nenhuma região é poupada desse problema. Como em muitos países do mundo, o patrimônio cultural brasileiro também corre o risco de dispersão, destruição, roubo, saque e tráfico. O Brasil é um país vasto, com um rico patrimônio que representa suas diversas tradições culturais e históricas. Apesar das fortes leis de proteção, tanto em nível nacional quanto internacional, o patrimônio nacional continua em risco de roubo e exportação ilegal, com baixa taxa de recuperação.
Quando teve início o processo de elaboração da lista, e ele envolveu quantas pessoas, dentro e fora do país?
A ideia deste projeto remonta a vários anos, mas a preparação da Lista Vermelha de Bens Culturais Brasileiros em Risco começou em 2021 com a seleção de especialistas de todo o Brasil. Eles identificaram as principais categorias de patrimônio cultural em maior risco de acordo com três critérios: os bens culturais incluídos na Lista Vermelha devem ser protegidos pela legislação nacional; vulneráveis (ou seja, em risco de roubo e exportação ilegal) e em grande demanda do mercado de arte. Como muitos países, o patrimônio arqueológico do Brasil corre o risco de roubo de museus e saques de sítios arqueológicos, assim como suas instituições religiosas e seus artefatos de arte e serviços litúrgicos, materiais bibliográficos, itens de comunidades indígenas do Brasil e fósseis, cultural e cientificamente objetos importantes. Para discutir e analisar todos os componentes do patrimônio cultural brasileiro, o Comitê Nacional do ICOM no Brasil reuniu uma grande equipe de especialistas sob a liderança de um coordenador nacional que trabalhou diretamente com o Departamento de Proteção ao Patrimônio da Secretaria do ICOM em Paris.
O que acontece após o lançamento da Lista Vermelha Brasil?
No ICOM, costuma-se dizer que a publicação de uma nova Lista Vermelha representa 50% do trabalho realizado. Os restantes 50% centram-se na comunicação e divulgação para tornar a lista conhecida a nível internacional. O ICOM trabalha com sua rede de 50 mil membros em todo o mundo, bem como com parceiros internacionais como UNESCO, UNIDROIT, Interpol e WCO para distribuir as Listas Vermelhas o mais amplamente possível. Claro que seu principal objetivo é combater o tráfico e ajudar na devolução e restituição de bens culturais brasileiros exportados ilegalmente ou roubados, mas ela é também uma poderosa ferramenta de conscientização, com o objetivo de prevenir esse tráfico, alertando e educando sobre a necessidade de proteger o patrimônio.
O futuro dirá se esses objetivos de prevenção e restituição foram alcançados. Mas também é importante destacar o fato de que as Listas Vermelhas do ICOM são apenas uma ferramenta entre muitas outras. Para combater o tráfico, cada Estado deve ratificar e implementar convenções internacionais, como a Convenção da UNESCO de 1970 e a Convenção UNIDROIT de 1995, bem como estabelecer uma legislação forte e serviços dedicados juntamente com ferramentas operacionais. Somente a conjunção de todos esses esforços protegerá eficientemente o patrimônio cultural.
De todas as categorias listas, qual corre mais risco?
Guiados pelos três critérios de seleção de categorias, os especialistas brasileiros identificaram cinco tipologias em maior risco. Em uma segunda etapa, os especialistas selecionaram as imagens correspondentes que serviram para melhor representar os tipos de objetos. Todas essas categorias estão ameaçadas de extinção. No entanto, é interessante destacar que a arqueologia é uma categoria regularmente presente nas Listas Vermelhas do ICOM, pois a pilhagem de sítios arqueológicos é uma dificuldade compartilhada por muitos países. No Brasil, artefatos arqueológicos do período pré-colonial, principalmente da Amazônia, são os alvos mais frequentes, e incluem cerâmicas decorativas, como urnas funerárias, vasos e estatuetas, e artefatos de pedra, como pontas de flechas, lâminas de machado e pequenos pingentes.
O quão lucrativo é o mercado de comércio ilegal de tais bens culturais?
Nos últimos anos, o tráfico ilícito de arte e antiguidades tornou-se um grave problema de segurança global, que transcende fronteiras e cujo impacto vai muito além da perda de patrimônio material. No entanto, dada a natureza ilícita do tráfico de bens culturais e a falta de regulamentação geral do mercado, é extremamente complicado obter estatísticas confiáveis. O combate ao tráfico tornou-se um grande desafio que envolve monitoramento permanente, ações complementares de cooperação e desenvolvimento de instrumentos e ferramentas eficazes. Entre as soluções defendidas pelos especialistas, medidas de sensibilização e controle são essenciais na proteção do patrimônio móvel. É por isso que o ICOM elabora as Listas Vermelhas. ✱