“OBRASIL TEM UM ENORME PASSADO PELA FRENTE”: a frase de Millôr Fernandes nunca pareceu mais atual e resume com precisão a sensação de parte significativa do público que se reuniu na última semana de outubro no Instituto Tomie Ohtake para debater o futuro do País, às vésperas da eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República. O encontro, organizado em torno da exposição “AI-5 – Ainda não terminou de acabar”, desempenhou uma dupla e profundamente conectada missão: discutir o conteúdo da exposição em cartaz no centro cultural até o último dia 4 de novembro e ao mesmo tempo atualizar essa reflexão até os dias de hoje, evidenciando os nexos entre a herança do período ditatorial e o retrocesso repressivo vivenciado na atualidade.
Mais uma vez, constatou-se que o silêncio e o apagamento em relação aos feitos no período da ditadura são profundamente responsáveis pelo retorno virulento de políticas de negação dos fatos históricos, de hostilidade em relação a práticas culturais que se propõem a expor as feridas do passado e do presente, e pelas tentativas crescentes de forjar narrativas que reconstroem e modifi cam esse passado, transformando as vítimas em algozes e os algozes em heróis. Estudantes, artistas, críticos e editores presentes na Assembleia foram unânimes em concordar que o silêncio é o principal responsável por
esse fantasmagórico renascimento das ações repressivas. E não apenas em relação ao passado mais recente. Tal fenômeno se repete em processos históricos mais longos,
como a escravidão e o genocídio indígena, negados por não terem sido devidamente expurgados. Esse diagnóstico compartido repete de certa forma aquele já esboçado na
exposição “Osso”, realizada no mesmo espaço também com curadoria de Paulo Miyada e que é assumidamente o ponto de partida da mostra sobre o AI-5.
O desejo de refletir sobre esse momento terrível da história brasileira, de suspensão de direitos e perseguição política por parte do aparelho de Estado, não é fruto apenas do aniversário de 50 anos do Ato Institucional n.o 5, mas sim da sensação de que era preciso tratar dessas questões latentes. Ele nasce tanto da experiência de reunir obras contemporâneas interessadas em lidar com esses fantasmas como do esforço em criar um espaço de reflexão simbólica sobre a violência social intensa no país. “Osso” – tanto a mostra como o debate que suscitou – unia duas pontas importantes: a expressão artística de questões sociais e políticas e a denúncia em relação a um caso específico de injustiça contra Rafael Braga, enquadrado injustamente na lei anti-terrorismo por carregar produtos de limpeza.
Tal esquecimento negociado não ocorreu em países como Argentina e Chile. Ao invés da anistia “conciliadora”, os países vizinhos julgaram e encarceraram aqueles que tomaram o poder pelas armas. E continuam nesse movimento de expurgo, como comprova o atual processo encaminhado no Chile contra os militares envolvidos numa ampla rede de corrupção. Do ponto de vista da arte, o paralelo é o mesmo. Enquanto o que se viu no
Brasil foi um silenciamento em relação à produção mais crítica dos anos 1960, o predomínio de uma postura de autocensura institucional e o menosprezo por essas ques-
tões no período posterior, nos países vizinhos houve um esforço – tanto institucional como da sociedade civil – para instituir memoriais capazes de transmitir à população os feitos trágicos do período militar. É bem verdade que temos em São Paulo o Memorial da Resistência, mas seu alcance e dimensão ficam muito aquém da gravidade dos fatos sobre os quais se debruçam.
Os memoriais têm sentido para além do campo simbólico. São ações efetivas que impedem o apagamento da memória, mas são também testemunhos de como a arte é vital para a elaboração desses traumas. O projeto desenvolvido por Nuno Ramos para o Parque de la Memória, em Buenos Aires, e que ainda está por ser construído, parece tocar com precisão no nervo dessa questão da visibilidade/esquecimento. A proposta, uma das 18 vencedoras do concurso realizado em 2000 envolvendo mais de 600 projetos de 44 países, é ao mesmo tempo singela e contundente: o artista propôs recriar parte do “Olimpo”, temido centro de tortura da capital argentina, porém invertendo sua aparência arquitetônica. Aquilo que é opaco, como as paredes, seriam feitos em vidro, enquanto as aberturas, como
portas e janelas, passariam a ser de mármore negro, explicitando assim o caráter oculto e terrível das perseguições do regime.
Autor de algumas das obras mais contundentes sobre a situação social e política do país, como 111 – trabalho que se debruça sobre a chacina do Carandiru, em 1992 –, Nuno se diz assustado com a “loucura discursiva” que vivemos no País. Sua resposta a essa violência veio na forma de uma série de performances, trabalhos quase teatrais, desenvolvidos nos últimos meses. Essas apresentações, que entrelaçam discursos, narrativas televisivas, debate político, tragédias (como “Antígona”) e alegorias (como “Terra em Transe”) estão disponíveis no youtube. “Momentos muito agudos trazem reflexões mais imediatas”, diz o artista, enfatizando a importância de lidar com as coisas no calor da hora, expressa no título “Aosvivos”, que dá nome a trilogia das peças.
Talvez o aspecto que mais assuste Nuno seja o insuportável grau de violência de nossa sociedade, “essaviolência anônima, contra o anônimo”. “Matam 63 mil pessoas por ano, com índices sempre crescentes, passando pelos vários governos, e a gente tolera”, lamenta. No entanto, ele pondera que não devemos deixar a arte levar a culpa, acreditar que por causa do acirramento das tensões ela deveria tomar para si o papel de responder sempre aos acontecimentos. “Arte tem que ser boa, como for”.
Resgate
Voltar atrás e rever esses movimentos esque- cidos pelas instituições, pela crítica e pelo circuito artístico é algo vital, se quisermos encontrar caminhos que bloqueiem aqueles que defendem o fim do caminho democrático no País. Nesse sentido, a exposição AI-5 pinça na nossa história recente dois projetos de grande importância – simbólica e conceitual – que merecem ser reavaliados nos dias de hoje, quando buscamos novas saídas. O primeiro deles é o plano elaborado por Mario Pedrosa para o novo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, depois que este foi destruído pelo fogo em 1978 (qualquer semelhança com o caso do Museu Nacional não é mera coincidência). Logo após o desastre, Pedrosa sugere reestruturar o museu em torno de cinco eixos vitais para a compreensão da arte brasileira, com núcleos dedicados às artes negra, indígena, popular, do Inconsciente e contemporânea. O segundo é a tentativa liderada por Aracy Amaral de reorientar a Bienal de São Paulo, transformando-a numa espécie de polo latino-americano, capaz de estimular a troca, a produção e a exibição da arte regional como forma de fortalecimento político e cultural. Ambos não saíram do papel, mas são – juntamente com o resto da produção de seus autores – fontes vitais de realimentação nesse processo de resgate de modelos capazes de orientar o processo de resistência diante das tentativas de esfacelamento da cultura nacional.