Importante casarão no bairro do Cosme Velho, no Rio de Janeiro, o Solar dos Abacaxis despertou, em meados de 2016, a atenção de um grupo muito interessado em revitalizar o espaço para fomentar um projeto cultural. De lá para cá, surgiu e cresceu o Solar dos Abacaxis que, segundo Bernardo Mosqueira, curador e um dos fundadores do espaço, “é um modo de pensar e fazer cultura, relações”.
Já passaram pela programação do Solar artistas como Adriana Varejão, Cinthia Marcelle, Ernesto Neto, Antonio Dias e Anna Bella Geiger, mas também nomes que vêm despontando em tempos mais atuais, como Jaime Lauriano, Maxwell Alexandre, Juliana Santos e Anna Costa e Silva.
Em entrevista à ARTE!Brasileiros, Mosqueira conta sobre o espaço, a proposta institucional e financiamento do projeto, dentre outras coisas. Confira abaixo:
ARTE!Brasileiros: Como surgiu a ideia do Solar dos Abacaxis? Qual seria a “missão” do Solar?
Bernardo Mosqueira: Havia algum tempo que eu tinha o desejo de criar um espaço independente aqui no Rio. Eu não sabia se seria um espaço para exposições ou residências, nem onde seria, nem como se daria. Então, fui apresentado ao arquiteto Adriano Carneiro de Mendonça pela artista Marina Simão. Adriano era um dos filhos de um dos 13 proprietários de um tal imóvel vazio e tinha vontade de ocupa-lo de alguma maneira, talvez com ateliês. Anteriormente, já havia desenhado um projeto de hotel para o lugar, mas naquele momento desejava ateliês ou residências. Fomos visitar o espaço que estava quase em ruínas, e eu fiquei encantado. Sonhamos juntos, passamos meses desenhando o projeto e viajando para apresentar aos proprietários. No final das contas, conseguimos um acordo com a família e começamos a negociar um contrato. Os proprietários são tantos e tão dispersos, que mesmo o Adriano sendo parte da próxima geração da família, nunca teve nenhum privilégio por isso em relação ao uso da casa. Pelo contrário. Sempre fomos um pouco alienígenas para a família. Logo no início Adriano convidou a produtora Maria Duarte e eu convidei o educador Bruno Balthazar (mestre e amigo de longa data) e o curador Ulisses Carrilho (que havia trabalhado comigo em outras ocasiões como a exposição Encruzilhada, no Parque Lage). A Maria tinha a vontade de abrir uma escola e vinha de uma experiência à frente do Projeto Portinari. O Bruno era educador havia 20 anos e tinha vivência e pesquisa enorme sobre cultura e pensamento afro-brasileiro, além de ter sido DJ e produtor. O Ulisses era curador e super pesquisador de arte, cultura e ativismo. Essa formação com nós 5 durou por muito tempo. Depois, os três se desligaram em momentos diferentes e entrou a produtora Duda Medeiros. Podemos dizer que o Solar (como ele é hoje) é fruto do encontro lindo entre esses 5 membros iniciais. Fizemos tudo juntos e a partir do nada, do espaço vazio e caixa zero. O Solar robusto em gestação reflete em muito o pensamento e a força da Duda. Devemos dizer também que o Solar é fruto da colaboração de todos os artistas, mestres, interlocutores, músicos, curadores, advogados, dançantes, visitantes, parceiros de todo tipo que entregaram um pouco de si para a construção do Solar. É o resultado do encontro de lutas, desejos, reflexões e trabalhos de muitxs.
Passamos um tempo pesquisando a história da casa. Ela era chamada de “Casarão do Cosme Velho”, “Mansão do Cosme Velho”, “Casa dos Abacaxis” e muitos outros nomes. Escolhemos então a expressão “Solar dos Abacaxis” para batizar o projeto, pois nos interessava a ideia de uma instituição solar e nos inspiravam os múltiplos sentidos e simbologias do abacaxi. Abacaxi poderia ser sinônimo de problema ou desafio, mas para os britânicos é sinal de abundância e hospitalidade radical. Por ser uma infrutescência, poderia ser símbolo da coletividade. É certamente uma marca da tropicalidade, uma bromélia estranha, com origem aqui no Brasil, na América Latina, e que conquistou o planeta sendo espinhosa por fora e doce por dentro. Nos interessava ser uma casa solar desses abacaxis. Então surgiu o Solar dos Abacaxis com a missão de catalizar o encontro entre indivíduos e coletivos comprometidos em pensar e experimentar novas formas de estar no mundo, mais justas, saudáveis e afetuosas. Entendemos e construímos o Solar como um espaço de convergência para artistas, criadores, pensadores e todos os tipos de agentes que vêem o novo Sol nascer no horizonte das margens. É um espaço para liberdade. Mas não só liberdade na arte. Entendemos que há outros lugares do exercício experimental da liberdade – cultivamos todos eles.
A!B: Existe alguma história por trás do prédio?
BM: O Solar dos Abacaxis tem como sede atual esse imóvel. É uma casa de 1000m² de 1843, com 1000m² de jardim e área externa e mais de 4000m² de floresta, mata atlântica preservada. O edifício é um chalé neoclássico que alguns dizem ser o primeiro edifício neoclássico desenhado por um arquiteto brasileiro, o Jacintho Rebello, um dos principais discípulos do Grandjean de Montigny. Projetou a casa com 22 anos. A casa foi encomendada pelo comendador Borges da Costa que, não se sabe como, perdeu o imóvel que se tornou uma casa de cômodos. Sua neta, Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, conseguiu recomprar a casa e fez uma grande reforma (em que foram adicionados os abacaxis de ferro nas sacadas). Ela e seu marido Marcos habitaram o espaço como um centro de encontro para intelectuais, artistas e políticos naquele começo da segunda metade do século XX. Com o falecimento dos dois, o tempo e por brigas familiares, a casa ficou abandonada. Quando chegamos, tinha mais de 40 goteiras desfazendo a casa. Fizemos muitas e muitas obras para conseguir manter a casa em pé. Obras caríssimas e praticamente invisíveis. Telhado, vigas, escoramentos, pisos, proteções, testes, laudos. Mas valeu muito a pena. Aquela antiga proprietária, Anna Amélia, foi uma importante feminista e defensora dos direitos das mulheres e dos estudantes. Ela escreveu um poema nos anos 50 sobre a casa chamado “Utopia” em que começava dizendo “Essa casa vai ser algum dia / um centro de ciência e de arte / um refúgio da história e da poesia / aqui os jovens virão sonhar (…) e eu não verei, e eu não verei “. Durante esses 3 anos, nós pudemos ver.
A!B: Quais são as principais atividades do espaço? É uma instituição?
BM: O Solar é um modo de pensar e fazer cultura, relações. Não sei se é um “espaço”, pois poderia estar em outro lugar, em nenhum lugar, se manifestar em outra coisa. Não sei se é “independe”, pois ninguém o é – e nos interessa mais a liberdade do que a independência. Não chamaria de “instituição”, pois temos muita consciência de nossa constante mutação e de nossa perenidade. Nos últimos 3 anos, fizemos mais de 40 ações. 30 delas foram exposições. Um dos grandes interesses do Solar recai sobre a criação de outros modelos de atividade cultural para além dos entendidos como “tradicionais”. Há, por exemplo, o FuzuErê (que é um programa para crianças e famílias, com atividades propostas por artistas), o ÀRoda (que é um programa de debates, lançamentos de livro etc. que parte do modelo relacional da roda para gerar interações), a Grandiosa Junina de Santo Antonio do Abacaxi (uma exposição em que todas as obras são inspiradas nos elementos tradicionais da festa de São João), o Baile da Aurora Sincera (uma exposição em que todos os trabalhos dos artistas são ao mesmo tempo peças de Carnaval) etc. O mais famoso desses modelos é o MANJAR, uma forma de criar reflexão para a qual convidamos colaboradores artistas, músicos e chefs de cozinha. O resultado é uma exposição, que é ao mesmo tempo mostra, celebração e jantar, com todos mirando a construção de uma experiência de pensamento. O Solar sempre foi muito interessado em conseguir atrair e reunir públicos que não fossem o público específico das artes visuais. Nosso desafio e desejo sempre foi misturar os públicos. Por isso, a diversidade dos colaboradores (em suas práticas e próprias vidas) sempre foi importante misturar públicos no Solar. Essas mostras duram apenas um dia (ou 2 ou 3 no máximo). Essa temporalidade específica do Manjar faz com que todos os públicos tenham de fato de estar no Solar quase que ao mesmo tempo. Além disso, se normalmente as pessoas têm experiências nas exposições de poucos minutos, no MANJAR as pessoas ficam 3, 4, 6, 10 horas na exposição. Dá tempo de ver, rever, conversar, mudar de opinião, mudar de estado de consciência, sentir novamente, repensar. Os resultados disso são muito poderosos. As formas de montar exposições e iluminar e sinalizar no Solar são muito incomuns (usamos a mata, os banheiros, as alturas, os cantos de todas as maneiras, com as luzes mais loucas), mas a operação na temporalidade das exposições talvez seja nosso gesto mais radical e de efeitos mais profundos. Nos Manjares, participaram mais de 100 artistas. 80% das obras foram inéditas. A gente tem noção das potências e dos problemas da efemeridade e, por isso, pensamos muito em memória e legado. Se 80% dessas obras inéditas foram parcial ou completamente comissionadas, algumas dessas obras oferecemos como doações às coleções públicas do MAR e do MAC. Somos obcecados com registro das mostras.
A!B: Como é o financiamento para viabilizar a proposta?
BM: Todas as mostras e todas as obras de estrutura da casa foram custeadas com pequenas doações na entrada e com venda de bebida nos nossos eventos. Nos nossos eventos, na entrada informamos quanto foi o custo de produção de cada exposição e, a partir de nossa média de visitação, dizemos quanto cada um deveria pagar para cobrir os custos da ação. Quem não pode pagar, entra sem pagar nada. Quem pode pagar por dois, paga por uma pessoa que não pode pagar. Quem pode pagar mais e quer apoiar o projeto, paga mais. Foi dessa forma e com venda de bebidas que custeamos tudo o que fizemos. Nos interessa muito o estudo de novas economias, novas formas de troca e organização. No início nós mesmos (e os amigos) éramos todas as equipes (de limpeza, montagem, produção, segurança, montávamos o som, vendíamos as bebidas). Hoje em dia, são quase 50 pessoas trabalhando para cada Manjar acontecer, por exemplo.
A!B: Quais são as principais atividades que ocorreram até então? Pode citar nomes de artistas que passaram por lá?
BM: Passaram pelo Solar desde artistas mais estabelecidos (como Adriana Varejão, Anna Bella Geiger, Antonio Dias, Carlos Vergara, Cinthia Marcelle, Ernesto Neto, Helio Oiticica, Laura Lima, Lucia Laguna, Marcos Chaves, Rivane Neuenschwander), muitos brasileiros de fora do sudeste (como o gaúcho Fernando Lindote, o paraense Armando Queiroz, o maranhense Thiago Martins de Melo, o baiano Tiago Sant’Ana), estrangeiros do Sul Global (como o colombiano Carlos Motta, o cubano Carlos Martiel, o dominicano Engel Leonardo, a Nigeriana Karima Ashadu) além de inúmeros artistas jovens (como Jaime Lauriano, Maxwell Alexandre, o coletivo Opavivará, Vivian Caccuri, o coletivo Mariwo, Rafael Bqueer, Lais Myrrha, Barbara Wagner, Jonathas de Andrade, Juliana Santos, Ivan Grilo, Ismael David, Anna Costa e Silva etc.). São muitos e muitos artistas responsáveis pela construção do Solar. Entre as pessoas que já vieram participar de rodas ou aulas, estão Suely Rolnik, Eduardo Viveiros de Castro, Peter Pal Pelbart, Tatiana Roque, Mariama Bah (do Gâmbia), Charly Kongo (Congo) e muitos outros. Entre os curadores, colaboramos com Catarina Duncan, Pollyana Quintella e Bernardo de Souza.
A!B:Existe uma equipe principal responsável pelo Solar? Quem faz parte?
BM: Eu, o arquiteto Adriano Carneiro de Mendonça e a produtora Duda Medeiros. Ana Clara Simões Lopes é nossa curadora assistente e Clara Reis nossa comunicação. Ainda como colaborador o educador Bruno Balthazar e a curadora Beatriz Lemos. Cada uma das atividades no Solar tem suas equipes extras. Há ainda muitos profissionais voluntários como advogados, arquitetos e administradores.
A!B:Existe uma programação para este ano? Se sim, qual?
BM: De hoje até o final do ano, teremos uma regularidade um pouco menor de exposições no Solar. O principal motivo é o fato de que o atual modelo de relação com os proprietários do imóvel chegou a seu limite, e nós entendemos que o Solar vai ter de se tornar, em pouco tempo, o proprietário de sua sede. Por isso, nós estamos ao lado de alguns colaboradores desenhando estratégias e buscando investidores ou apoiadores para adquirirem o imóvel, de forma que o Solar possa se expandir, se aprimorar e sobretudo se tornar um espaço de liberdade de forma mais perene na cidade. Ou seja, há mudanças bastante radicais no horizonte do Solar e vamos precisar de toda a ajuda!
Que ótima notícia saber que ganhamos mais um espaço cultural para desenvolver cultura e debates populares no Rio. Parabéns pela iniciativa.