“Popular sim, ingênuo jamais”. A frase do artista baiano Nilson Pimenta colocada na orelha esquerda do catálogo da 14ª Bienal Naïfs do Brasil denota muito bem o panorama da exposição, que foi apresentada no Sesc Piracicaba até o último dia 25 de novembro. Sob o tema “Daquilo que escapa”, a curadoria teve a intenção de refletir sobre o que poderia fugir aos seus olhos durantes as visitas aos ateliês dos artistas, que foram chamados por eles de “casas-ateliês”. Afinal, é dentro do próprio lar que os artistas Naïfs do Brasil produzem suas obras.
Esta edição da Bienal Naïfs também mostra que há muitas questões que podem escapar de quem observa a obra de um artista popular olhando-o a partir da concepção do primitivismo, que reduz esses artistas a um rótulo que pode significar um julgamento pelo contexto sócio-cultural em que vivem. Talvez o ponto mais latente disso na mostra seja o fato de que muitas obras abordam discussões sociais e políticas, muitas vezes identitárias, que podem muitas vezes se fecham apenas à ambientes acadêmicos e seriam reproduzidas apenas por artistas que tenham acesso a isso. Os naïfs se mostram muito à frente nesse ponto, assinalando nitidamente o seu posicionamento sobre algumas dessas questões.
Quem visitou a exposição já se deparou logo na entrada com as obras sem título de Arlindo de Oliveira que fazem menção à ocupação das favelas cariocas pelo BOPE. Ao lado delas, a peça intitulada Não corra que eu vim buscar sua alma, também de Arlindo e também fazendo alusão ao grupo da polícia, expressa com veemência a opinião do artista e sua contribuição para a discussão sobre o genocídio do povo pobre causado por essa ocupação nos morros, devido aos abusos cometidos pelos militares, também das UPPs e também das forças armadas, que participam da intervenção militar na Cidade Maravilhosa.
Há uma série de obras, de diferentes artistas, que remetem a temas levantados pelo feminismo. A mais impactante foi feita por Alex dos Santos, artista de Jaboticabal/SP e é intitulada A violência contra a mulher, de 2018. Nela, o artista aborda uma série de brutalidades cometidas contra mulheres, desde as fogueiras da Inquisição até a Lei Maria da Penha, traçando uma linha do tempo. A artista Ana Zamaro se faz presente com a obra Absolutas, também deste ano, na qual pinta vários rostos de mulheres, cada uma com suas características que fogem a um padrão. O título dela diz muito sobre como Zamaro vê a questão da estética feminina no âmbito das discussões dos feminismos.
Duas obras de Gildo Xavier trazem a temática LGBT à tona, tratando dela por meio de uma visão sobre configurações familiares. Em Retratos de Família (2017), ele pinta uma série de núcleos parentais de diferentes composições, inclusive LGBTs, passando também por indígenas, negros e de religiões diversas, contrariando um padrão do que é rotulado como “família tradicional brasileira”. A obra Conquista (2017) também entra nesse aspecto ao mostrar um casal de mulheres que realiza o sonho de ter um filho.
Esses são só alguns exemplos de como as discussões da contemporaneidade se fazem presentes no repertório dos artistas Naïfs que passaram por esta edição da Bienal realizada pelo Sesc, que teve curadoria de Ricardo Resende, Juliana O. Campaneli e Armando Queiroz, além da curadoria educativa de Alexandre Araujo Bispo, e que não foi nada ingênua.