A arte de Carlos Vergara não adere a territórios, é desenvolvida nas viagens constantes que ele faz pelo mundo impulsionado pela magia da descoberta. Conhecido como artista viajante, ele se desloca para outras culturas e enriquece sua obra com associações de cores, matérias, traços. Parte de seu universo estará na retrospectiva que tomará todo o espaço da galeria Bolsa de Arte de São Paulo a partir de 30 de março.
A mostra abrange cinco séries de trabalhos realizados a partir das expedições à Serra da Bodoquena, em Mato Grosso do Sul, à Capadócia, ao Caminho de Santiago de Compostela, à Pompéia, ao Cazaquistão, entre outros locais. O público fará uma imersão nas suas escolhas e achados, tudo dentro da prática libertária de Vergara conviver com o mundo. “Essa mostra é um acontecimento digno de nota que enfrento em dois ataques, um na área da pintura e outro na escultura”. Para ele não se trata de uma mera exibição de artista: “trabalho olhando para fora e para dentro e as ideias determinam o material com que vou desenvolvê-las”. Vergara é inquieto, mas seletivo e rigoroso com o resultado de seus trabalhos tanto em pintura sobre tela, desenhos em papel, escultura com aço, monotipias sobre telas grandes ou simples lenços de bolso.
Com giros e buscas persegue sinais para o sagrado, “não no sentido religioso, mas o sagrado em um sentido mais amplo, contido na vontade de suplantar o estado humano, no grandioso”. Os sudários, feitos do decalque do chão, de superfície e locais escolhidos por ele, são embebidos das cores da terra e vivificam a trama do tecido, seja tela ou lona. Isso é evidenciado nas monotipias obtidas na Serra da Bodoquena, onde habitam os Kadiveu, índios que lutaram no front brasileiro na Guerra do Paraguai. Esses trabalhos foram realizados em formatos e suportes diferentes, impregnados de memória, história, antropologia. Ainda dessa série estão os lenços de bolso, de formato idênticos, que juntos têm a intensidade de um mapa dentro de uma cartografia viva. Como um geólogo, Vergara realiza os decalques curvado, agachado, ajoelhado, sobre calçamentos irregulares e diferentes. Ele trabalha os contrários, mimetizando a delicadeza do lenço com a aspereza da superfície das ruas. As cenas dessa “performance” parecem captar o aspirar e expirar do artista em ação. “Os lenços foram trabalhados no Caminho Português de Santiago de Compostela, sem auxiliares”. A contrassenha dessa poética transcendental é o registro de caminhares em tempos passados. Cada peça é um elemento simbólico de território, ocupação e sentimento de pertencimento. Os “desenhos” no solo surgem ao acaso ou são construídos. Há rastro de cidades, como tampas de bueiro e grades de contenção de lixo.
Todo processo de produção costuma deixar sua marca. Dentro da série Natureza Inventada, as esculturas são feitas em aço e trazem vestígios de uma eventual paisagem. As peças são recortadas e se encaixam numa espécie de jogo. Cinco delas têm grandes dimensões, com cerca de dois metros e meio de altura por um e vinte de largura e dão envergadura à mostra. Paralelamente sucedem-se outras peças de pequenos formatos, feitas em aço inox.
No início da década de 1960 Vergara foi influenciado pela pop arte e pelo expressionismo abstrato, movimento ao qual Iberê Camargo se ligou e com quem Vergara trabalhou por um bom tempo. Da pintura com gestos figurativos, grafismos e cores primárias ele muda seu trabalho durante a ditadura militar. Integra a antológica mostra Opinião 65, ao lado de Antonio Dias, Rubens Gerchman, quando sua obra começa a ganhar notoriedade. Em 1980 participa da 39ª Bienal de Veneza junto com Antonio Dias, Ana Bella Geiger e Paulo Roberto Leal e cria um imenso painel com papel craft e que agora revisita. Em sua releitura, também faz novas versões das colunas que se desfolham por meio de cortes precisos de estilete. Toda exposição, de qualquer artista, é uma visão temporária da obra cujo olhar pode se modificar dependendo de onde ela é exposta.
Uma das partes inéditas da retrospectiva é uma série de assemblages, termo usado para definir colagens com objetos, realizada com asfalto líquido e parafina. Ao contrário de formas fechadas, essa série se coloca como espaço ativo e expandido da pintura. O conjunto de obras define Vergara como um artista profícuo e atuante que, ao longo dos anos, provoca ações e descobertas em uma fruição contínua.