- Vivian Mocellin
Uma das facetas da “guerra cultural” entre a esquerda e a direita que o Brasil vive atualmente é a crítica generalizada às ciências humanas. Dois conjuntos de críticas podem ser lidas e ouvidas nos mais diversos meios de comunicação e espaços sociais: a opinião pública de extrema direita, a direitona tosca, acha que as ciências humanas “são um antro de esquerdistas”, ou “esquerdopatas”, como preferem dizer. A direita liberal, que se quer mais civilizada, afirma que as ciências humanas são simplesmente inúteis e gastam dinheiro precioso das agências de pesquisa e horas preciosas dos alunos que deixam de aprender o que interessa nas escolas do ensino básico e superior.
Vamos lá. Em primeiro lugar, sinto dizer que as ciências humanas há muito não são um “antro de esquerdistas ou revolucionários de plantão”, se é que um dia o foram. Hoje, o marxismo é uma entre tantas possibilidades teórico-metodológicas aceitas, como sempre foi, aliás. Foi-se o tempo das “patrulhas metodológicas” tão presentes nos anos 1970 e 1980. Obviamente, essas ponderações pouco valem para a direitona, para a qual todo mundo que defenda direitos humanos, estado laico e não fica histérico diante de um discurso feminista, é um radical de esquerda. É verdade que vaia de bêbado não vale. Entretanto, causa muito ruído.
Quanto à inutilidade, devo dizer que ela não é uma exclusividade das ciências humanas. Basta uma olhada no hilariante site do Prêmio Ignobel que premia pesquisas reais e, à primeira vista, completamente inúteis, em várias áreas nobres das hard sciences. Mas como estou no ramo universitário há algum tempo, sempre acho que pode haver alguma utilidade futura inaudita em pesquisar como os cães e gatos se posicionam para urinar em relação às linhas magnéticas da Terra, qual a personalidade das rochas a partir de uma perspectiva de vendas ou como o Boletim da Sociedade Kardecista de Ximbica da Serra representou a Revolução Russa de 1917 (só essa última eu inventei, desculpem-me os kardecistas e ximbiquenses…). O lema do prêmio, inclusive, é premiar “ pesquisas improváveis que fazem as pessoas rir, para depois pensar”. Apesar do risco da endogenia, é preciso confiar nos pares para avaliar a relevância de um tema de pesquisa, cabendo à universidade se comunicar melhor com a sociedade leiga para convencê-la da importância.
Também não se pode acusar as humanidades de ser a vilã dos gastos com a ciência e com a pós-graduação no Brasil. Os dados de 2016 indicam que cerca de 10% a 12% das verbas do CNPq e FAPESP são direcionadas para esta área. Pelo preço de quatro microscópios eletrônicos de varredura é possível sustentar um programa de pós-graduação em história ou ciências sociais, gigantes como os da USP, durante um ano.
O fato é que não é raro, no próprio meio acadêmico, até em universidades públicas, ouvirmos à boca pequena (e à boca grande) que as ciências humanas não fazem pesquisa, não geram patentes, e tem “apenas” vocação para formar professores e fazer atividades de extensão, algo visto preconceituosamente como a “sopa para os pobres” do entorno.
Há também o outro lado da moeda. Muitos colegas respeitáveis acham que só as Humanidades tem capacidade de pensar a sociedade, o que é um grande exagero. Pessoalmente, eu não quero que historiadores e poetas pensem pelos engenheiros, mas eu gostaria de engenheiros que também pensassem como historiadores e poetas. O país, a engenharia e a história só ganhariam com isso.
Se quisermos um país com capacidade de formulação de políticas públicas eficazes, consciente dos seus interesses econômicos e posição geopolítica em um mundo complexo, de um aluno e um trabalhador que possam ser algo mais do que repetidores de tarefas mecânicas, precisamos das ciências humanas na pesquisa e na educação. Independente do debate esquerda / direita, que se bem colocado pode até ser muito produtivo (o que não é o caso do Brasil atual, infelizmente), as ciências humanas têm um papel a cumprir na sociedade.
Como desenvolver políticas de saúde, políticas de inclusão social, políticas de segurança, políticas culturais, políticas de transporte e energia sem a ajuda da sociologia e da antropologia? Como fundamentar o debate sobre reformas políticas, constituição e cidadania, sem a ciência política? Como conhecer o legado ou desmontar as armadilhas institucionais colocadas pelo passado sem a história? Como desenvolver políticas agrícolas, agrárias, urbanas, de moradia, de preservação ambiental, sem a geografia?
Sim, é possível que um governo desenvolva todas estas políticas públicas sem as pesquisas inúteis em ciências humanas. Como? Deixando que as corporações e a burocracia produzam estudos e formulações ou importando pesquisas de consultorias milionárias e de agências internacionais nem sempre independentes dos interesses econômicos e financeiros que regem o mundo. Não que a universidade esteja isenta deste risco, mas um ambiente de pesquisa em uma universidade pública, ou mesmo privada mas pautada por uma gestão comunitária, financiada a partir de critérios claros de qualidade e relevância, examinado por pares e controlado pela sociedade civil, ainda é o melhor caminho para se produzir ciência e conhecimento. Aliás, isto já vem sendo feito pelas universidades brasileiras. Se os políticos e gestores públicos não utilizam este conhecimento “público e gratuito” como deveriam, isso é outra história. Diz mais sobre nossos governantes, burocratas e parlamentares do que sobre a nossa universidade.
Para os que acham que a qualidade e relevância do conhecimento acadêmico se mede pela inserção no mercado, deveriam levar em conta que as ciências humanas também tem um potencial muito grande neste campo. Além de consolidar uma comunidade de leitores, consumidores de mídias e impressos, o vigor das humanidades tem impacto direto na indústria do turismo, no jornalismo, na indústria editorial, e indireto na chamada “economia criativa” (publicidade, games, design, moda). Portanto, não se trata de responder a estas demandas matando a pesquisa e transformando os cursos de ciência humanas em escolões genéricos. É verdade que os currículos dos cursos devem ser atualizados, como também é verdade que as pesquisas puras, “inúteis” para alguns, deveriam ser melhor articuladas à pesquisas aplicadas e ao desenvolvimento de C&T. Da minha parte, como profissional pesquisador e docente da área de Humanidades há mais de 30 anos, aceito esta cobrança.
Estas mudanças implicariam em construir um novo patamar da relação entre pesquisa, ensino e extensão, e não em destruir o próprio conceito de pesquisa em humanidades a partir da separação dos professores universitários da área entre um grupo seleto de pesquisadores full time e uma massa de professores horistas em salas lotadas de graduação. A área de humanidades, nas universidades públicas brasileiras, consolidou sua identidade e vocação: pesquisa e ensino articulados e inseparáveis. E apesar das dificuldades, é um modelo bem-sucedido, ainda que possa ser aprimorado e revisado. Por exemplo, na última lista do badalado QS World University Ranking sete cursos de graduação da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP estão entre os 100 ou 150 melhores do mundo, o que não é pouco para uma Faculdade com 10 mil alunos de graduação, 3 mil de pós-graduação e para um país sem tradição universitária. E todos estes cursos de graduação, diga-se, tem programas de pós-graduação a eles conectados que são considerados “de excelência” pela CAPES e reconhecidos internacionalmente.
Mas sabemos a guerra cultural contra as humanas está longe de ser desinteressada, meramente preocupada com a “doutrinação” dos pobres alunos quase adolescentes por professores mal-intencionados ou com a gastança do precioso dinheiro público que poderia ir para o superávit primário e fazer os investidores mais felizes. Trata-se de uma concepção de país, de ciência e de educação que está em jogo, e que veio à tona de maneira avassaladora nesta aliança tática entre a direitona autoritária e a direitinha liberal que tomou conta do Brasil contemporâneo.
No ensino, a guerra às humanidades tem produzido outras críticas superficiais. Por exemplo, a de que o currículo do ensino médio está cheio de “penduricalhos” desinteressantes para os alunos, desviando do que realmente interessa aprender no mundo de hoje: português, matemática e inglês. A integração curricular das disciplinas, a interdisciplinaridade, a flexibilização e o protagonismo dos alunos, sobretudo no ensino médio, são propostas importantes, mas não podem ser implementados a partir da virtual exclusão das humanidades no ensino médio.
Mas este assunto fica para um próximo texto