Temos que aprender a ser índios, antes que seja tarde. Foi essa a principal mensagem dada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro na mesa “Tristes Trópicos”, realizada na Festa Literária Internacional de Paraty de 2014. Segundo o pesquisador, neste momento em que o planeta passa por uma situação de “catástrofe climática” e está sendo transformado em um “lugar irrespirável”, devemos aprender com os povos indígenas “como viver em um país sem destruí-lo, como viver em um mundo sem arrasá-lo e como ser feliz sem precisar de cartão de crédito”. “O encontro com o mundo índio nos leva para o futuro, não para o passado”, disse ele.
“Hoje os índios estão mais visíveis do que nunca, mas mais vulneráveis do que nunca.
Viveiros de Castro dividiu a mesa com o também antropólogo Beto Ricardo, fundador do Instituto Socioambiental (ISA), e com a mediadora Eliane Brum. Em discurso afinado, os dois denunciaram a dura realidade vivida pelos índios brasileiros atualmente e disseram haver uma “campanha” em voga no Congresso para retirar os direitos que estes povos conquistaram com a Constituição de 1988. “Hoje os índios estão mais visíveis do que nunca, mas mais vulneráveis do que nunca. O Congresso tem uma maioria de proprietários de terra em uma ofensiva final contra os índios”, disse Viveiros de Castro, que também criticou o governo federal pelo trabalho quase nulo na demarcação de terras.
O antropólogo, célebre mundialmente por sua teoria do perspectivismo ameríndio, comparou a situação dos índios no Mato Grosso do Sul com a dos palestinos na Faixa de Gaza. Segundo ele, os guaranis do Estado vivem ou nas beiras de estrada ou confinados em reservas mínimas, das quais são frequentemente expulsos pelas pressões do agronegócio: “O Mato Grosso foi transformado em um nada, a custa de que se possa plantar ali soja, cana e botar gado para exportação, para alimentar os países capitalistas centrais. Devia chamar Mato Morto, ou ex-Mato”. E continuou: “Os índios estão vendo o céu cair em suas cabeças. Mas dessa vez vai ser na cabeça de nós todos.”
Beto Ricardo criticou também a cobertura dada pela imprensa à questões como essa no País. “Quantos nomes de grupos indígenas você conseguiria pronunciar de memória? A imprensa brasileira consegue pronunciar pouquíssimos. Fala em um índio genérico”, disse ele. Ao apresentar a série de publicações intitulada Povos Indígenas no Brasil, o antropólogo aproveitou para cutucar inclusive o público: “Quem quiser não só decorar os nomes das capitais do Brasil, mas os nomes dos povos, pode ler esses livros”. “Os índios tem muito a colaborar para um país mais democrático e diverso”, concluiu.
A última intervenção de Viveiros de Castro, após as perguntas do público, foi talvez a que mais chamou atenção pela dureza e aparente pessimismo, mas foi muito aplaudida. O antropólogo disse sentir vergonha de ser brasileiro quando vê o que se fez com os povos originários dessa terra, ou ainda quando lembra que o Brasil foi o último país no mundo a abolir a escravidão (com exceção da Mauritânia). Para ele, no entanto, o sentimento de vergonha deve ser preservado, já que é também o que gera o sentimento de intimidade com o país: “Se eu fosse francês, teria vergonha do que a França fez na Argélia, na Indochina, na África. Ou seja, ser brasileiro não é especialmente vergonhoso. Ser de qualquer país é vergonhoso, porque todo país é construído em cima da destruição de povos”, explicou.
Livro de Cabeceira
Na tradicional mesa de encerramento da Flip intitulada “Livro de Cabeceira”, Viveiros de Castro esteve mais uma vez entre os participantes, e fechou com brilho sua passagem pela festa literária. Ao lado de alguns dos convidados de maior destaque do evento, como Andrew Solomon, Fernanda Torres e Juan Villoro, o antropólogo escolheu ler o trecho de um sermão de Padre Antonio Vieira em que o religioso ressaltava a dificuldade de conversão dos índios brasileiros: “Como diz o Vieira: ‘A gente dessa terra é a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo. Outros gentios, outros pagãos, são incrédulos até crer. Os Brasis, ainda depois de crer, continuam incrédulos.’” E Viveiros de Castro concluiu: “Ou seja, esse tema, a ideia de que os índios tem uma inconstância essencial, passou a ser uma espécie de traço definidor do caráter ameríndio, consolidando-se como um dos estereótipos do nosso imaginário nacional. A saber, o imaginário do índio mal convertido, que à primeira oportunidade manda deus, a enxada e as roupas ao diabo e retorna feliz à selva. E eu diria, para concluir, que é graças a isso que os índios continuam a salvo dos seus salvadores”.