Dez anos atrás, Martin Scorsese e Fran Lebowitz colaboraram em Public Speaking, um documentário em que a autora expôs suas filosofias de vida. Agora, na nova série da Netflix Pretend It’s A City, Fran se reúne com Scorsese novamente para enfurecer mais pessoas. Por que? Ela também não sabe: “Embora eu saiba que as pessoas – com muita frequência – fiquem furiosas comigo, isso ainda me surpreende, porque ‘quem sou eu’? Estou tomando decisões por você?. Se pudesse mudar as coisas, eu não ficaria com tanta raiva delas, a raiva vem do fato que não tenho poder, mas estou cheia de opiniões”.
Além de ser uma reclamona por hobby, Fran Lebowitz é uma pessoa engraçada por profissão e uma escritora imersa em um bloqueio criativo de mais de duas décadas. Ela publicou três livros e começou sua carreira escrevendo uma coluna para a Interview Magazine, criada por Andy Warhol – seu encontro com Warhol vale ser conferido nesta entrevista. Mas seu atributo que justifica a reunião com Scorsese, um nova-iorquino apaixonado como ela, é justamente sua vida social na metrópole estadunidense e sua observação de tudo o que acontece ao seu redor.
Embora o título da série já aluda claramente a Manhattan, o protagonismo é duplo; a cidade aparece através das histórias e das andanças de Fran – metafórica e literalmente, quando o diretor a coloca como um flâneur Godzilla desbravando um modelo em escala da cidade, no Queens Museum. Vale notar que essa é uma das poucas direções que Martin dá a Fran em três horas de show, já que em Pretend It’s a City ele assume o papel de co-conspirador, às vezes na penumbra, se mostrando presente através dos ataques de riso encadeados pelas perguntas e respostas da entrevistada. Ninguém gosta mais da companhia de Lebowitz do que Scorsese, provavelmente por isso que ele nos fez a gentileza de usar seu meio para compartilhá-la.
Gravado em um tempo pré-pandêmico, o show utiliza uma linguagem visual que nos coloca frente a frente com Lebowitz em seu habitat, seja ele um bar, um teatro ou uma biblioteca. O encontro virtual é quase uma quebra de protocolo já que Fran nunca possuiu um computador, muito menos um smartphone, e ela não está nas redes sociais. Justamente, o título da série se refere à frustração dela com as pessoas tão absortas em seus dispositivos que esbarram em você na rua. “Finja que é uma cidade… onde há outras pessoas”, ela implora.
Cada episódio temático introduz seu guarda-chuva de assuntos, como observa a crítica Judy Berman à TIME Magazine: “Resplandecente em seus paletós, jeans e botas de caubói, sua marca registrada, cabelo preto repartido ao meio como seu antepassado espiritual Oscar Wilde, ela fala de escrever: ‘A maioria das pessoas que amam escrever são escritores terríveis’. Sobre a libertação queer: ‘Nada é melhor para uma cidade do que uma população densa de homossexuais furiosos.’ Em leilões de arte de nove dígitos: ‘Vivemos em um mundo onde eles aplaudem o preço, não o Picasso.’ Sobre as pessoas que desejam ver suas próprias experiências representadas em livros (um de seus grandes amores, junto com sono, festas e cigarros): ‘Um livro não deveria ser um espelho – deveria ser uma porta.’ Sobre os guilty pleasures: ‘Não os tenho, porque o prazer nunca me faz sentir culpada.’”
Sua persona se apresenta com o passar dos episódios, mas ela chega sem pedir licença, em grande parte porque Scorsese renuncia à tentativa de apresentar Lebowitz aos não iniciados. “Qualquer um que não esteja familiarizado com seu trabalho vai se acostumar com ela sendo o tipo de observador cultural ao qual plateias em Nova York sentariam para ouvir por horas”, ressalta Steve Greene, editor de Televisão para a Indiewire.
Nessas ocasiões, como uma conversadora, ela é astuta, autodepreciativa, dotada de um timing cômico impecável, mesmo nas entrevistas mano a mano, cujos trechos são inseridos por Scorsese aqui e ali junto com filmagens de acervo. As passagens mostram Lebowitz calmamente discordando, com relação a esportes, de um ansioso Spike Lee; engavetando qualquer tirada de David Letterman – ainda na década de 1980, logo após o lançamento de seu primeiro livro, Metropolitan Life -; e sua troca de postos para entrevistadora em uma conversa com Toni Morrison, a escritora estadunidense premiada com o Nobel de Literatura, com quem Lebowitz manteve uma amizade de mais de quatro décadas e a quem a série é dedicada.
“Conheci Toni em 1978. Eu, é claro, era uma criança: tinha 27 anos e ela 47. Havia uma série de leituras na biblioteca pública em frente ao Museu de Arte Moderna“, conta Lebowitz em um artigo para o The New York Times. “Eles me perguntaram se eu iria ler e eu disse que sim. Eles disseram: ‘Sempre temos duas pessoas. Você sabe quem é Toni Morrison?’ Ela não era muito conhecida na época, mas eu tinha lido todos os seus livros. Eu disse: ‘Eu amo o trabalho dela’. Eles disseram: ‘Você gostaria de ler com ela?’ Eu disse: ‘Isso é ridículo.’ Quer dizer, somos tão diferentes como escritoras. Mas eu acabei fazendo aquilo, e parecia que uma grande amizade havia se formado em apenas uma hora.”