* Da coleção de excelentes entrevistas e reportagens do Marcelo Pinheiro
O talento do maestro baiano Letieres Leite talvez encontre páreo somente em sua determinação. Aguerrido, como o cerca de 1,1 milhão de africanos que, escravizados, desembarcaram em Salvador e fizeram de sua terra natal um dos terrenos mais férteis para a música do Brasil, Letieres não poupou esforços para impor suas convicções artísticas. Aos 20 anos, sozinho, deixou a capital baiana, onde estudou Artes Plásticas na Universidade Federal da Bahia (UFBA), para se aventurar em uma casa de shows no Sul do País. Saxofonista e flautista, ao chegar em Florianópolis, em 1981, com o diminuto cachê recebido pelas apresentações, teve de encarar a difícil rotina de, por quase dois meses, dormir embaixo de um viaduto. Pouco depois, na capital gaúcha, viveu dias melhores. Integrou um respeitado grupo da cena instrumental da época, a Banda de Nêutrons, e foi além. Autodidata na escrita musical, foi convidado a assinar arranjos para a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre.
De volta a Santa Catarina, em 1985 embarcou em uma viagem para a Espanha com um grupo de músicos. Quando os amigos voltaram para o Brasil, decidiu ficar por lá, pegou um trem e foi parar na Áustria. Em Viena, onde Beethoven e Mozart fizeram história e Strauss e Schubert nasceram, Letieres aprimorou seus conhecimentos musicais. O ingresso em renomados conservatórios veio depois de, no carnaval vienense, encantar a população local e o prefeito da cidade ao apresentar arranjos de escola de samba para peças sinfônicas. Depois de breves temporadas musicais na Inglaterra, França e Suíça, voltou ao País em 1994.
Também inspirado pelo vanguardismo de maestros que marcaram a história da UFBA, como o alemão Hans-Joachim Koellreutter e os suíços Walter Smetak e Ernst Widmer, Letieres tem pleno domínio intelectual de sua arte, mas nem por isso abre mão do despojamento e da irreverência visíveis nas apresentações com a Orkestra Rumpilezz. Com esse mesmo misto de informações, o maestro conversou com nossa reportagem, por telefone, enquanto se deslocava para um compromisso em Olinda. Na primeira quinzena deste mês, ele esteve na cidade histórica pernambucana escrevendo arranjos para uma nação de candomblé chamada Xambá, que há quase 90 anos mantém viva a tradição da cultura bantu. Bem-humorado, o regente batuqueiro brinca que está se sentindo aluno das crianças de cinco, seis anos, que intuitivamente sabem bem mais do que ele sobre a riqueza do Xambá. Com a palavra, Letieres Leite, Guardião da Mãe África e maestro aprendiz.
CULTURA!Brasileiros – Você estudou Artes Plásticas na UFBA no final dos anos 1970. O que o levou à decisão de abandonar a pintura e se dedicar à música?
Letieres Leite – Desde pequeno queria ser pintor, e até meus 20 anos tinha certeza de que era isso que ia fazer da vida. Como aluno de Artes Plásticas, pude participar dos seminários livres de música. Comecei a entrar nessa onda (Letieres tocava saxofone e flauta transversal) e deu tudo muito certo. Logo passei a me apresentar em um evento organizado pelos alunos, a Mostra de Som Universitário contra a Ditadura, e o jogo virou.
O seminário era nos moldes daquele criado pelo Koellreutter no começo dos anos 1960? Em 1980 ainda havia no campus da UFBA a mesma efervescência cultural que marcou a gestão do reitor Edgar Santos?
Edgar fez uma grande revolução, não só na UFBA, mas em toda a Bahia. Transformou a música, o teatro, a dança e a cultura de Salvador, porque fez um investimento altíssimo para que tudo isso acontecesse. No campo da música, trouxe da Europa mestres como Koellreutter, Widmer e Smetak. Quando comecei a frequentar os seminários, Koellreutter já tinha partido do Brasil, mas tive a sorte de pegar os últimos anos do Bastianelli (o maestro italiano Piero Bastianelli) e do Smetak na UFBA. A faculdade ainda respirava aquele ambiente dos anos 1960, tanto que, em 1980, participei do primeiro Festival de Música Instrumental da Bahia, que teve (o guitarrista)
Hélio Delmiro e (o saxofonista) Victor Assis Brasil como convidados.
Seu talento musical teve influência familiar?
Não mesmo. Aliás, até eu resolver tocar não sabia de ninguém da minha família que fosse envolvido com música. Depois é que fui descobrir que um tio-avô foi maestro de uma orquestra de Petrolina, em Pernambuco. Apesar de ele também tocar saxofone, não tive o menor contato com ele.
Antes de participar dos seminários você já tinha algum conhecimento dos instrumentos?
Aos 12 anos, em Salvador, tive a sorte de estudar em um colégio público chamado Severino Vieira, que tinha uma orquestra afro-brasileira criada pela pesquisadora Emilia Biancardi. Entrei nessa orquestra e toquei flauta e sax durante dois anos. Foi o primeiro contato com a música afro-brasileira que tive na vida. Uma experiência tão forte que ficou comigo até hoje. Foi lá também que tive os primeiros contatos com professores de música que eram mestres populares e que me ensinaram a tocar percussão. Um deles, Mestre Moa do Katende, com quem tenho contato até hoje e para quem até fiz uma composição, me deu uma consciência muito forte sobre essa herança musical, algo que serviu como um subsídio para que, depois, eu pudesse entender a força dessa música e quisesse estudá-la. Acho que o começo da Rumpilezz, ou seja, das matérias que quis desenvolver em relação à música afro, veio desse período de descobertas no colégio. Nos trabalhos que fiz na Europa esses elementos já estavam muito bem colocados em mim. Sempre tratei a música instrumental com essa intenção. Quando toquei com Paulo Moura em Montreux, em 1992, o som já era bem parecido com o que faço hoje.
Vocês tocaram juntos no festival de jazz?
Sim. Uma das músicas que apresentei para o Paulo era um frevo, chamado Saideira, e a segunda parte tinha um ijexá em que eu fazia a percussão. Paulo foi um grande incentivador das minhas ideias, porque também gostava da combinação do sopro com a percussão.
Ele fez parte da geração de músicos que, nos anos 1960, explorou matrizes africanas, como os maestros Moacir Santos e Abigail Moura, da Orquestra Afro-Brasileira, e grupos como Os Ipanemas…
Exatamente. E foi uma feliz coincidência eu ter me reencontrado com ele em Montreux – fui aluno do Paulo, em 1984, quando morei em Porto Alegre – porque essa reaproximação fez com que eu insistisse na ideia de improvisar música brasileira por meio desse formato, de percussão e sopro, que me levou ao conceito da Rumpilezz.
Enquanto educador, para além da questão musical, mas também do conhecimento da ancestralidade africana, como você desenvolve a formação dos músicos?
Como disse, a estética musical da Rumpilezz surgiu bem antes de a orquestra existir. E todos eles sabem que esse conceito veio também da compreensão de que em muitos países a influência musical da diáspora negra tem organizações próprias, com muito rigor, algo que nós, no Brasil, ainda não tínhamos desenvolvido bem.
Faltavam métodos de aprendizado por aqui?
Sim. E fui entender a falta desse rigor por aqui quando passei a pesquisar a música de Cuba, que também veio da diáspora africana, tem a mesma clave que existe na música daqui, mas é diferente da nossa, por causa das combinações étnicas que aconteceram no Brasil e na maneira como executamos essas mesmas referências. No Brasil, até bem pouco tempo atrás, não havia, por exemplo, a consciência dos subgêneros africanos, algo que os cubanos e os músicos de jazz americanos começaram a desenvolver no final da década de 1940. Quando fui estudar na Europa é que, por conta própria, passei a fazer minhas anotações, partindo, primeiramente, do que eu já sabia desde Salvador. Foi na Europa que comecei a entender que a forma estrutural de toda música derivada da diáspora tem modelos semelhantes de estruturação e rigor. Os estudos em Viena permitiram que eu organizasse as barras de compassos, a duração das notas, o tal “fechamento europeu”, coisas que ainda não eram concebidas teoricamente para a sutileza rítmica que há na música que veio parar por aqui com a diáspora africana.
Até então, sobretudo com o trabalho de maestros como Moacir e Abigail, essas ações eram isoladas em iniciativas de registro, mas não na construção de métodos de ensino.
Acho que esses maestros criaram soluções para que os músicos que viessem depois deles combinassem a seção rítmica e os outros instrumentos com maior tranquilidade. Veja, por exemplo, que nas músicas do Moacir – e digo isso porque tive a oportunidade de estudar seu repertório – os músicos conseguem tocar a anotação afro porque ele cria fórmulas em que a influência percussiva conversa com o piano, com o contrabaixo. Abigail Moura também pensava assim, mas trazia a música em uma essência muito mais próxima das matrizes africanas do que do jazz.
Para além da música instrumental e do samba, essa influência também é muito presente em nossa canção popular.
Sim. É um privilégio de quem trabalha com a música brasileira. Veja o caso da bossa nova: tive a oportunidade de estudar o violão do João Gilberto e percebi que, nele, mesmo que tudo seja organizado de outra forma, também existe essa clave da diáspora. João não atrasa ou adianta a melodia ao bel-prazer. Ele interfere na batida de seu violão justamente porque percebe onde a clave africana está acontecendo. João é alguém que sabe que essa população foi tirada de suas origens na marra, por meio de um grande holocausto, como assim considero, mas que também acredita que essa tragédia construiu algo complexo, tão bonito, que tem de ser respeitado. Quando criei o conceito do disco A Saga da Travessia e tive de pensar nos navios negreiros que ancoraram na costa brasileira, criei também uma imagem de alento. Fantasiei que eles chegavam aqui com o júbilo de que não seriam completamente destruídos, como se pudessem prever: “Chego aqui quase destruído, mas meu descendente vai ser Pixinguinha, meu descendente vai ser Jackson do Pandeiro, meu descendente vai ser Batatinha”. A ideia do Travessia para mim, é justamente propor um júbilo, enaltecer a possibilidade de, em meio à tragédia, poder criar uma arte que influenciou a música das Américas. O jazz, o blues, o samba e até o tango, todos esses gêneros vieram da diáspora.
A Saga da Travessia foi lançado seis anos após o primeiro trabalho da Rumpilezz. Esse longo hiato trouxe distinções entre os dois trabalhos?
Para mim, esse álbum é uma evolução natural da ideia do primeiro, que era bem mais didático. Todos os arranjos e execuções das composições deste novo disco ficaram completamente em sincronia com essa ideia de clave africana e da exploração de seu poder da forma mais consciente possível. Consegui fazer com que os trombones e os trompetes, por exemplo, tocassem em sincronicidade com a percussão, ritmicamente amalgamados. Neste novo trabalho, não tive a menor preocupação de parecer didático. Utilizei, por exemplo, toques de compasso par que foram transformados em ímpar. Senti uma liberdade composicional inédita, tanto no aspecto harmônico quanto nas melodias. A diferença fundamental entre o primeiro disco da Rumpilezz e este segundo vem justamente dessa liberdade. Acho que outro fator central é que, desde o começo, tive um mote muito claro, a questão da travessia atlântica da diáspora, algo que deu um sentido ideológico para as composições desse novo disco.
Mesmo não lidando com o formato na Rumpilezz, você colabora com vários artistas da canção. Como é, por exemplo, sua relação com a música de Gilberto Gil, homenageado por você em Professor Luminoso.
Não é à toa que chamei Gil de professor. Aprendi muito com ele. Na música popular brasileira há vários momentos em que a origem rítmica africana foi muito bem utilizada, mas o trabalho do Gil tem grande importância, para mim e para a Orkestra Rumpilezz, porque, nas coisas que ele faz, não existe apenas o aspecto rítmico. A música de Gil também traz formas de harmonia e melodia que assumem um caráter contemporâneo, uma intenção que coincide com meu desejo, porque, por mais que eu me baseie em elementos ancestrais que estão na música instrumental, minha ideia também é fazer música contemporânea. O ijexá, um dos toques que Gil recriou,
por exemplo, vem embalado na maneira toda especial de ele extrair o balanço do seu violão.
Como foi ter tocado com ele em São Paulo?
Tivemos a felicidade de fazer alguns concertos com ele no Sesc Pompeia. Nesses encontros a sensualidade que há na música de Gil ficou ainda mais evidente. Foram momentos muito felizes para mim, porque eu sempre soube que a música dele está direcionada para os mesmos conceitos que eu defendo. Por isso mesmo não hesitei em fazer essa homenagem para ele.
Aliás, esse encontro com Gil atesta outra faceta importante da Rumpilezz, a versatilidade da orquestra para dialogar com outros artistas…
Tenho o costume de aproximar a orquestra de compositores que impõem desafios rítmicos. Lenine, por exemplo, que já tocou com a gente, sempre gostou de brincar com os ritmos de Pernambuco e, a partir deles, fez construções interessantes. Estou em Olinda, na condição de aprendiz, e percebo o quanto ele defende a música daqui. Vi esse mesmo respeito com a música baiana quando me propus a desvendar o violão de Caymmi, que traz linhas de baixo e divisões rítmicas prontas e precisas. A aproximação da Rumpilezz com o trabalho dele foi muito leve. Geralmente levo os arranjos para ensaiar com a orquestra e começo pela sessão rítmica para depois seguir para as partituras de sopro. Com as composições do Caymmi aconteceu algo interessante, porque nelas tudo está pronto e muito bem insinuado. Ao conhecer o violão do Caymmi descobri que ele tinha plena consciência da construção abrangente que há em sua música. Algo que parece vir de seu inconsciente, e que está evidente no resultado de tudo que ele fez. Algo bonito de perceber. Elementos que estão diretamente ligados ao melhor da música brasileira.
Aliás, vi há dois anos o show do projeto Goma Laca, que reunia músicas de influência afro compostas desde 1902, mas arranjadas por você e com execução de músicos contemporâneos. Tanto no show quanto no disco (ouça e baixe o álbum) é impressionante constatar a modernidade daquelas composições, quase seculares…
Exatamente. Tudo ali parece estar ligado com a música do presente, não é? Tanto que escrevi os arranjos para o disco, mas quando chegou a hora de tocá-los ao vivo coloquei todas as partituras em um envelope, guardei-as embaixo de uma mesa e falei para os músicos: “Vamos fazer tudo do zero”. Eles concordaram e conduzi os arranjos na base da onomatopeia, coordenando baixo, piano, canto e bateria. Claro, deu tudo muito certo. Fizemos ali uma espécie de vivência dessas composições.
Gostaria de encerrar a conversa falando da experiência de perpetuar suas ideias por meio da Rumpilezzinho.
O projeto nasceu em uma escola de música que tive na Bahia. Quando percebi que havia um grande número de alunos que não podiam pagar pelas aulas, decidi criar esse projeto social. Alguns deles eram tão talentosos que, indiscutivelmente, tinham de continuar com a gente. Depois percebi que havia outra vertente ainda mais dependente de apoio: a de mulheres que desejam tocar instrumentos de orquestra popular. Quando estudei na Europa, toquei em orquestras de Berlim, de Viena, de Londres, e sempre havia mulheres tocando contrabaixo, bateria, sopros. Fiz então uma turma especial, que ganhou o nome de Rumpilezz de Saia. Chegamos a ter quase 40 meninas estudando música e formamos várias delas. Ainda tenho dificuldade de manter esses projetos, porque eles são tocados com apoio da iniciativa privada. Apesar de termos enfrentado um intervalo sem atividades por falta de apoio, a Rumpilezzinho continua na ativa até hoje. A metodologia é a mesma da orquestra, mas inclui instrumentos elétricos, como guitarra, teclado e contrabaixo. Seguimos firmes, de forma consistente.
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Ouça a íntegra do álbum A Saga da Travessia no canal do Youtube do Selo Sesc.
O CD pode ser comprado por meio da loja virtual do Sesc (acesse)