Brasileiros com um mínimo de consciência política e senso de respeito ao livre arbítrio dedicaram a última terça-feira* (31.3.2014) para, exatos 50 anos depois, reverenciar a memória das vítimas do golpe civil-militar de 1964 e repudiar o legado sombrio dos 21 anos de ditadura. Pesquisa anunciada hoje pelo R-18, maior banco de dados sociais da América Latina, revelou: entre 31 de março e 1 de abril, 46 milhões de usuários trataram do assunto nas redes sociais. Nada mais justo, e oxalá esse número cresça, ano após ano. Afinal, a ditadura deflagrada com o golpe que depôs o presidente João Goulart foi o capítulo mais sombrio da história recente do País. Sob a égide de cinco marechais e generais não só os opositores políticos do regime sofreram tortura, foram mortos, exilados ou submetidos à clandestinidade, mas também os protagonistas de diversas expressões culturais do País, que procuravam manifestar, em suas obras e em seu ativismo cidadão, resistência e repúdio ao regime.
Nesses 21 anos de obscurantismo seria indigno minimizar o impacto nefasto da ditadura na vida dos brasileiros, mas houve nos dias derradeiros de 1968 – ano em que boa parte da juventude do mundo se insurgiu contra a opressão de valores comportamentais e políticos – um ponto divisor, que elevou as arbitrariedades dos militares ao ápice da barbárie. Com o decreto do Ato Institucional n° 5, em 13 de dezembro daquele ano, os militares fecharam o Congresso, caçaram mandatos, suspenderam direitos políticos e recrudesceram a censura vigente e a prática da tortura, instaurando um crescente ambiente de terror no País.
Foi nesse contexto nefasto que, dois dias após o Natal de 1968, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos, em Salvador. Encarcerados por dois meses, os compositores, que havia pouco tinham enterrado simbolicamente a Tropicália no programa televisivo Divino, Maravilhoso, justamente pela consciência de estarem flertando com o perigo, foram obrigados a sair do País e partir, em julho daquele ano, para um exílio em Londres, onde viveram por dois anos.
Mas não foram só eles que partiram. Entre milhares de brasileiros comuns, outras estrelas da nascente MPB também tiveram que botar o pé na estrada. Pouco depois, entre outros, Chico Buarque foi para a Itália, Nara Leão para a França e Edu Lobo para os Estados Unidos. Quem por aqui ficou, para poder lidar com a censura sem correr o risco de ser o próximo exilado ou cobaia de toda sorte de torturas, teve de se reinventar.
Especulações sobre as atrocidades do período diziam, por exemplo, que Geraldo Vandré sofreu lavagem cerebral e foi emasculado (teve os testículos retirados), mas ele próprio nega a suposição grotesca e até mesmo a hipótese de que tenha sido torturado. Verdade ou não, depois de sua prisão e exílio, em 1968, inquestionável mesmo foi a total reclusão e hiato produtivo do compositor do hino de protesto Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores.
Nesse contexto de guerra declarada, em que todos tinham um inimigo comum, a ditadura, então dotada dos superpoderes do AI-5, houve também quem contasse com a notória estupidez dos censores. Chico, por exemplo, que escreveu letras contundentes, como Apesar de Você e Vai Passar, chegou ao cúmulo de criar uma personagem, o sambista Julinho da Adelaide, e, camuflado em seu pseudônimo, registrar a pérola Jorge Maravilha, cujo refrão mandava recado sonoro e dos mais insolentes para o general Ernesto Geisel: “Você não gosta de mim / Mas sua filha gosta”. No mesmo contexto, Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós compuseram Pesadelo, gravada pelo MPB-4 no álbum de 1972 do sugestivo título Cicatrizes, que continha, entre outras afrontas, frases como: “Você corta um verso / Eu escrevo outro / Você me prende vivo / Eu escapo morto”.
Mas houve também quem criasse e defendesse obras de extremo lirismo a partir de mensagens cifradas e subjetivas, especialmente jovens compositores e letristas que começavam a defender seus repertórios, como Luiz Melodia, o conterrâneo Jards Macalé e Waly Salomão, poeta baiano ligado a trupe tropicalista. Nesse período sombrio, em que dar continuidade a trajetória artística demandava abrir verdadeiras trincheiras, Waly (então sob o codinome Waly Sailormoon) dirigiu um dos espetáculos de maior simbolismo para dimensionarmos hoje o terror da era Médici.
Em novembro de 1971, sob a batuta de Waly, Gal Costa subiu ao palco do Teatro Teresa Raquel para dar início ao espetáculo Fa-Tal: Gal a Todo Vapor. Composto de 19 canções, o show foi dividido em duas partes; uma acústica, com Gal e o violão em primeiro plano; outra, bem mais energética, conduzida pelo Lanny Trio, uma usina de som formada pelo guitar hero tropicalista Lanny Gordin, o baterista Jorginho Gomes, irmão de Pepeu, Baixinho, também do Novos Baianos, na tuba, além do contrabaixista Novelli.
O título de uma reportagem de Teresa Gomes publicada na revista InTerValoquando da estreia do espetáculo sintetiza a experiência: “Gal Dá Um Show a Todo Vapor”. O conteúdo do texto, no entanto, é visivelmente comprometido para evitar a mordaça da censura. O que era um grito urgente contra o ambiente de terror instaurado no País foi tratado por Teresa como um lamento pelo fim da contracultura – que até definhava, mas, como veremos, o alvo de Gal era outro.
“Gal Costa está no Teatro Teresa Raquel, no Rio, num espetáculo onde ela canta, meio amarga, que o sonho hippie acabou, que a cultura underground faliu”, diz o olho da reportagem, que logo após traça um perfil do público: “Grande massa da plateia era formada pelos jovens louquíssimos, com suas roupas exóticas, cabelos enormes, colares, anéis…”.
No camarim de Gal, Teresa tentou aprofundar a pauta “declínio da era udigrudi”, mas não obteve sucesso: “Não sou cantora underground. Sou uma cantora e nada mais… O que eu sou é aquilo que se absorve da vida. Não sou nem do underground nem do establishment!”, afirmou Gal, que ainda deu à repórter da InTerValo uma pista profética “A orientação desse show é a renovação do repertório”.
Um dos trunfos do espetáculo, a seleção de canções de Fa-tal reunia pérolas da velha guarda, como Falsa Baiana, de Geraldo Pereira, Antonico, de Ismael Silva, e Fruta Gogóia, tradicional tema do folclore baiano, ao lado de clássicos inistantâneos de amigos de Gal, como Dê Um Rolê, de Moraes Moreira e Luiz Galvão, dos Novos Baianos, Como 2 e 2, de Caetano, e Charles Anjo 45, de Jorge Ben.
A histórica série de shows também carrega o mérito de ter sido determinante para consolidar os nomes de Luiz Melodia, ao revelar a primorosa Pérola Negra, Jards Macalé, Duda Machado e Waly Salomão, que escreveram dois retratos pungentes daquele início de década, Hotel das Estrelas (letra de Duda) e Vapor Barato (letra de Waly). Os versos reproduzidos abaixo escancaram que o alvo de Gal não era exatamente o ocaso da contracultura.
“Sobre um pátio abandonado / Profetas nos corredores / Mortos embaixo da Escada / No fundo do peito, esse fruto apodrecendo a cada dentada”
Excerto de Hotel das Estrelas
“Oh sim, eu estou tão cansado / Mas não pra dizer que eu estou indo embora / Talvez eu volte, um dia eu volto / Mas eu quero esquecê-la, eu preciso / Oh, minha grande, ah minha pequena, oh minha grande obsessão”
Excerto de Vapor Barato
Com esse lirismo combativo, que versava sobre as dores da permanência e do exílio como impossibilidades temporárias de uma subjetiva relação amorosa, o amor a nosso País, pouco depois, não por acaso, Waly, foi preso por portar um cigarro de maconha e amargou meses de cárcere no extinto complexo penitenciário do Carandirú, em São Paulo. Experiência que só tornou sua poética ainda mais incisiva e madura. Na solidão de sua cela, Waly escreveu, ainda sob a corruptela Sailormoon, o clássico Me Segura Qu’eu Vou Dar um Troço, publicado em 1972 pela José Álvaro Editor.
Em maio de 1972, meses depois de encerrar a temporada de Fa-Tal, Gal concedeu extensa entrevista à revista O Bondinho, em um bate-papo informal com o repórter Myltinho Severiano. O plá, para usar aqui uma gíria da época, tratava da infância na Bahia, da enorme vontade de ser mãe (desejo jamais concretizado por ela), do reencontro com seu guru João Gilberto e do significado de sua permanência no Brasil, quando podia se dar ao luxo de viver dias bem mais amenos em outro país ou continente. A argumentação vem como um quebra-cabeça cronológico, a partir de um episódio-chave para a Tropicália, ocorrido em 13 de novembro de 1968, exatamente um mês antes de ser decretado o AI-5.
“Cantei Divino Maravilhoso no Festival da Record. Anunciaram Caetano Veloso e Gilberto Gil e começaram as vaias. Entrei eu e a vaia dobrou. Vi a raiva e consegui entender. Quando passei pra frente do palco, as pessoas que estavam vaiando acabaram aplaudindo. Lembro que tinha uma menina me vaiando e eu fiquei com tanta raiva que olhei para ela e cantei: ‘É, é, é, é preciso estar atento e forte!’. Fui direto no olho dela, com uma violência tão grande que a menina parou e se sentou na cadeira. Era um acontecimento muito forte para mim. Uma coisa verdadeira. Depois, aconteceu a prisão de Caetano e Gil (seis meses depois, o exílio) e eu fazia o meu show pensando neles. Eu não podia fazer nada. O que eu podia fazer era gritar e cantar. Então, eu cantava por eles. Cantava pensando neles, cantava de uma maneira muito violenta. Era como se eu estivesse lutando por eles. Eu estava lá, junto com eles. Era o que eu podia fazer: cantar, cantar, cantar.”
Em decorrência do sucesso de Fatal: Gal a Todo Vapor, em dezembro de 1971, a toque de caixa, a Philips decidiu transformar os registros do show em um álbum duplo. Com projeto gráfico ousado, de Luciano Figueiredo e Oscar Ramos a partir de fotos de Edison Santos e do cineasta Ivan Cardoso, claro, os dois LP’s tem precariedades técnicas. Problema característico de um período em que a indústria fonográfica do País ainda não dispunha de experiência e tecnologia para realizar gravações ao vivo com alta fidelidade.
Mas esse demérito não faz a menor diferença. Quarenta e dois anos depois, as duas bolachas ainda fazem o coração bater forte, a voz embargar e as lágrimas caírem. É como um improvável túnel do tempo, que nos reporta, por meio dos músicos e da voz de Gal, ao passado de profundo torpor que adoraríamos poder reescrever.
Como disse a mãe de Gal à Teresa, a repórter que foi abordar a cantora em seu camarim na estreia de Fa-Tal: “Gracinha dá vida às músicas que canta! Não é minha filha?!”.
Verdade sem mentira, certo muito verdadeiro, diria o amigo Jorge Ben, Dona Mariá.
Texto Originalmente publicado no site da revista Brasileiros, na coluna Quintessência, em 3.4.2014